A origem da palavra “força” e da palavra “virtude” são um paradoxo na histórica separação entre corpo e mente: “força” deriva da palavra latina tardia “fortia”, por sua vez derivada de “fortis”. A expressão “fortia” se referia à força moral, em contraposição à força física ou mecânica. Esta última era o conteúdo da expressão “virtus” em latim. Virtus, ao longo dos séculos de latinização de outras culturas, gerou, entre outras, a palavra “virtude”, uma forma de força exclusivamente associada a capacidades mentais ou espirituais. Fortia, originalmente desencarnada, gerou “força”, essa palavra de significado e aplicações tão ambivalentes na nossa cultura.
Da força física dizemos ser “força bruta”, ou seja, crua, primitiva, sem sofisticação e pouco humanizada. Outras formas de força – virtude, talento, inteligência – foram recebendo outras designações. Para adquirir significado positivo, “força” precisa ser qualificada e uma forma de força (a “bruta”) se opõe à outra (“mental”, intelectual, espiritual).
Donde se assume que ambas não devem coexistir na mesma identidade e no mesmo sujeito: ou a pessoa é fisicamente forte (“bruta”) ou é intelectualmente forte (“inteligente”).
Se isso, de maneira geral, vale para a sociedade como um todo, quando olhamos para os dois gêneros percebemos peculiaridades.
Enquanto no homem a expressão da força (física) pode ser associada à ausência de inteligência, equilíbrio ou virtude, na mulher ela está associada a todas essas ausências e mais à mais fundamental de todas: a da feminilidade. A feminilidade, nas sociedades patriarcais, está associada basicamente à debilidade – de todos os tipos: física, mental, moral e emocional. Mulheres são representadas como sendo fisicamente fracas, menos inteligentes, menos confiáveis (afinal, Eva foi a responsável pela queda do paraíso…) e emocionalmente instáveis. Mulheres são fracas e são socialmente aceitas como tais.
Mulheres fisicamente fortes são consideradas menos mulheres.
Essa é uma visão oficial muito bem inculcada pelas instituições e meios de comunicação – é daquelas coisas que “todo mundo sabe” mas ninguém sabe exatamente de onde. Mulheres fortes são tão raras que ninguém lembra da própria mãe dizendo: “veja, filho(a), que mulher mais… masculina (ou feia, ou perigosa).”
Eu sou uma dessas mulheres fortes.
À medida em que fui ficando mais musculosa, observei três tipos de reação: a de uma parte das mulheres, que me dizia que “isso está indo longe demais”; a de outra parte das mulheres, que me admira e até mesmo se sente estimulada a fazer o mesmo (como na academia, onde me procuram para saber “o que eu faço” para ficar “assim”); e, finalmente, dos homens que se expressam (imagino que alguns não gostem, mas nunca me falaram nada).
A reação dos homens me surpreendeu.
Não vem ao caso comentar a reação face-to-face, violentamente positiva, que até agora me assusta um pouco.
Mas alguns indicadores quantitativos podem ajudar a interpretar esse fenômeno ainda crÍptico.
Como outras 10 milhões de pessoas, eu possuo um perfil na rede de contatos Orkut (www.orkut.com). Criei essa rede em abril de 2004, quando participava de um workshop sobre coletivos inteligentes cujo coordenador possuia uma comunidade no orkut e nos convidou para estudar o “caso” dessa comunidade virtual. Comecei tendo como “amigos” (contatos adicionados ao perfil) apenas os colegas do curso, cerca de 15 pessoas. Aos poucos fui acrescentando gente. Até abril deste ano, eu tinha em torno de 30 ou 40 amigos – um crescimento vegetativo de menos de 2 amigos por mês. Este ano o meu número de amigos aumentou por conta dos colegas da academia, que usam o orkut intensamente e me “descobriram” lá (um crescimento de cerca de 6 amigos por mês). Até exatamente uma semana atrás, eu tinha cerca de 70 “amigos”.
A fotografia de abertura do meu perfil era uma careta engraçada, onde minhas feições eram pouco reconhecíveis. No “álbum”, não havia nenhuma foto que mostrasse meu corpo. Dia 15 de setembro de 2005, eu substitui as fotos. Na abertura, coloquei uma foto bastante realista do tronco, com os braços mostrando ombros e bíceps bem definidos e volumosos. No álbum, mais duas fotos “realistas”, uma de costas, mostrando dorsais definidos, e outra com os braços cruzados, usando um top de treino.
No momento em que escrevo essa crônica, consta que eu possuo 120 amigos. Foram exatamente 50 amigos em 7 dias – uma média de 7 novos amigos por dia. Ou seja: 30 vezes a maior taxa de aumento que tive antes.
Em pouco tempo, fui contactada por uma categoria muito especial de participantes da rede: homens que admiram corpos femininos musculosos. Esses homens se organizam em pequenas, porém entusiásticas, comunidades. Existem 5 delas em português (não identifiquei nenhuma em outra lingua), todas recentes:
Nome da comunidade |
Quando foi criada |
Número de membros |
Female Muscle Show |
14/01/05 |
211 |
Adoro mulheres musculosas |
16/10/04 |
236 |
Amantes de musculosas |
30/06/04 |
254 |
Mulheres saradas e bombadas |
14/11/04 |
504 |
No modelos, yes Cavalas |
04/04/05 |
513 |
Todas essas comunidades foram criadas por homens. A única de “amantes de musculosos”, que se chama “eu curto os bombados”, não foi criada por mulher (foi criada dia 20/10/04 e tem 649 membros).
O “argumento” de abertura de algumas delas menciona o preconceito e discriminação contra a estética das mulheres fortes. Identifica a rejeição desse padrão como anti-feminino. Outras simplesmente homenageiam aquilo que chamam de “deusas de corpos esculturais”. Uma parte significativa desses homens não é constituida de homens musculosos. São homens de todos os tipos que consideram sensual e belo o corpo feminino musculoso. Um deles mantém um site de fotografias de mulheres musculosas com a intenção de divulgar e enaltecer o padrão. Outro desenha mulheres musculosas e também mantém um site para divulgar seu trabalho.
Aparentemente, eles buscam, nos sites de musculação (gerais e para mulheres), os perfis que se adequam ao padrão que admiram e são pro-ativos no contato.
A comunidades voltadas para musculação e treinamento de força foram, em geral, criadas por homens, mas aceitam mulheres. As comunidades de mulheres fortes são mais seletivas. Algumas são moderadas e recusam filiações masculinas. Também são bastante recentes e foram todas criadas por mulheres:
Nome da comunidade |
Quando foi criada |
Número de membros |
Sou mulher e amo musculação |
03/08/04 |
7405 |
As mais saradas do Orkut |
19/07/05 |
420 |
Gatas saradas do Orkut |
30/03/05 |
597 |
Somos marombeiras |
19/10/04 |
344 |
Pelo que se pode avaliar pelo perfil das comunidades do Orkut, existe uma “questão feminina” na musculação ou treinamento de força, mas não uma “questão masculina”. Reconhece-se uma especificidade não apenas no treinamento e alimentação/suplementação, mas na estética musculosa feminina.
Naturalmente, a rejeição ao padrão estético musculoso não poderia deixar de se expressar no Orkut também. Existem 20 pequenas (bem pequenas) comunidades de membros que reprovam a estética musculosa MASCULINA. São as comunidades “anti-bombados”. O discurso de uma boa parte delas traz à tona a oposição músculos-cérebro. Outras são apenas ressentidas com o suposto sucesso que os homens musculosos fazem publicamente, ou com seu comportamento agressivo, hostil ou arrogante. As primeiras cinco maiores (as únicas com mais de 200 membros) foram todas criadas por mulheres.
Nome da comunidade |
Quando foi criada |
Gênero do moderador ou dono |
Número de membros |
Odeio cara bombado |
28/08/04 |
M |
383 |
Não curto cara bombado |
23/08/04 |
M |
290 |
Odeio homem bombado |
01/12/04 |
M |
303 |
Eu detesto cara bombado |
28/12/04 |
M |
256 |
Quero que um bombado se exploda |
01/01/05 |
M |
211 |
Cara bombado, é tudo arrombado |
14/05/05 |
H |
116 |
Homem bombado pra mim é viado |
21/04/05 |
M |
86 |
Eu odeio homem bombado |
24/07/05 |
M |
69 |
Odeio másculo-bombado-feio |
08/02/05 |
M |
52 |
Não sou bombado… e daí? |
01/08/04 |
H |
39 |
Odeio bombado marrento |
20/05/05 |
H |
34 |
Já coloquei bombado pra correr |
12/05/05 |
H |
31 |
Eu odeio menino bombado |
17/01/05 |
M |
17 |
Homem bombado tem pinto pequeno |
24/07/05 |
M |
13 |
Eu odeio homem bombado |
27/08/05 |
M |
21 |
Eu odeio homem bombado |
24/07/05 |
H |
10 |
Eu odeio bombado q c axa |
03/09/05 |
H |
9 |
Odeio homem bombado e pitbull |
28/08/05 |
M |
14 |
Todo bombado é brocha |
01/08/05 |
H |
6 |
Todo bombado tem pau pequeno |
12/08/05 |
H |
7 |
Existem apenas duas comunidades que rejeitam a estética musculosa em mulheres, uma delas com apenas um membro. As duas foram criadas por homens. A “maior” delas tem apenas 31 membros.
Nome da comunidade |
Quando foi criada |
Gênero do moderador ou dono |
Número de membros |
Odeio mulher bombada |
09/04/05 |
H |
31 |
Odeio mulher bombada |
15/08/05 |
H |
1 |
O argumento discernível na abertura de uma delas menciona a associação entre a estética musculosa e a falta de feminilidade.
Observa-se, então, que enquanto existem mulheres se organizando para rejeitar a estética “bombada” masculina e articular o preconceito contra o corpo musculoso, praticamente não existem homens fazendo o mesmo em relação à estética equivalente em mulheres. Do mesmo modo, enquanto existem homens se organizando para estimular e homenagear a estética musculosa em mulheres, não existem mulheres particularmente fazendo o mesmo em relação aos homens.
Não há dúvida de que o corpo feminino musculoso é uma estética politicamente incorreta em todos os meios: dos mais cultos aos educacionalmente mais deprivados.
Para ter um efeito comparativo, busquei outras estéticas “alternativas”. Existem 209 comunidades com a palavra “gordas” – a imensa maioria delas contendo a palavra “eu odeio”. Existem 189 comunidades com a palavra “gordos”, poucas delas contendo palavras de ódio. Nessa categoria, há uma concentração de comunidades gays. “Magras” é uma palavra contida em 66 comunidades predominantemente formada por mulheres magras que defendem a estética. “Magros” segue um padrão semelhante em 58 comunidades. “Tatuado” consta de 61 comunidades de pessoas tatuadas. “Loira” consta de 1000 comunidades – quase todas de loiras.
Essa busca pouco sistemática mostrou que “bombados” e “gordas” são as categorias estéticas mais rejeitadas publicamente.
Essa constatação não é intuitiva: estudos anteriores mostraram, em surveys, que uma maioria associa qualidades mais negativas a corpos femininos musculosos do que a masculinos, expressando aquela que eu defini como a visão hegemônica. Quanto às gordas, há um imenso movimento de combate ao que é considerado um “bombardeio” que os meios de comunicação realizam em relação à estética magra. Não é politicamente correto criticar publicamente os gordos e gordas.
O que esse exame grosseiro de uma grande comunidade virtual revela é que os padrões estéticos politicamente corretos são constantemente transgredidos em ambientes em que a coerção é frouxa, como nas redes digitais.
Aparentemente, há uma grande demanda reprimida por um espaço para esse tipo de beleza feminina musculosa e talvez, espontaneamente, haja um tipo de atração natural por ela… O que você acha?
Marilia