Vamos lá, Marcus. Você não precisa rasgar o diploma. Mas pode usá-lo melhor e trabalhar dentro de um perspectiva de construção coletiva de saber e tomada de decisão negociada.
Acima de tudo, é importante que todos entendam que aqui, a questão subjacente chama-se RELAÇÃO DE PODER. A sociologia das profissões mostra que as corporações (médicos, engenheiros, etc) se organizam para lutar por PODER na sociedade através de hegemonia sobre um discurso: “eu passo a ter direito exclusivo para dizer o que é seguro na construção de uma ponte”; “eu passo a ter direito exclusivo para dizer o que é criminoso”; “eu passo a ter direito exclusivo para dizer o que é saudável” – OPA!! Mesmo? E eu, que sou o sujeito da condição saudável ou não? Que tenho ou não uma doença ou condição patológica? Tenho ou não direito de negociar essa condição?
A realidade hoje é que crescem os movimentos de “sobreviventes” e outros de pacientes pro-ativos, que têm alto domínio técnico de suas condições e se organizaram para resistir à hegemonia dos médicos sobre este discurso.
Ilustração: “você está com câncer de próstata e o tratamento indicado é prostatectomia radical”. Resposta de um paciente proativo: “discordo e não será assim: dada minha idade e o doubling time observado, é minha decisão que o tratamento deve ser radioterapia.” Se o médico não concordar e não souber fundamentar seu ponto de vista, com SIMETRIA e respeito, são grandes as chances dele entrar na lista negra nos Estados Unidos (Yes! Existe!).
Alguém já está começando a ver o paralelo com a Educação Física? Os personal trainers? Ainda não? Opa, continuemos, então.
Aos pontos.
Como diferente de um sujeito experimental, um paciente/aluno/cliente é um sujeito ativo e pro-ativo. Não precisamos negociar com um rato a resposta fisiológica dele ao stress oxidativo induzido por determinado protocolo de treinamento. Vamos medir indicadores e mostrar que o grupo que recebeu beta alanina (por nossa decisão rigorosamente não negociada) se recuperou melhor que o grupo controle.
Mas com o cliente, é preciso negociar a “verdade do contexto”. Por que? Porque ela é relativa a uma série de condicionantes individuais.
Vamos começar com o simples: o indivíduo lhe procura para prescrever um treinamento. Ele DESEJA perder “peso” – qualquer coisa que pese (músculo, gordura, osso, cuspe… ele não sabe). Você observa a composição corporal do sujeito e verifica que ela está saudável e adequada segundo o que você acha que sabe. No entanto, é importante, por algum motivo, para ele, perder peso. Desde que as medidas não conflitem com algum princípio ético seu (eu tenho, eu jamais aceitaria um aluno assim), o desejo é dele. O seu diploma serve para dar os parâmetros para que o programa não seja perigoso. Se você tiver bom senso, você vai procurar otimizar a perda de gordura e manutenção de massa magra e ponto final.
O corpo é dele, ele diz o que é bom para ele. O seu papel, com o seu diploma, é dar parâmetros e ajudá-lo a tomar a decisão (ELE TOMA A DECISÃO) melhor.
Outra coisa: o seu diploma vai ajudar muito pouco na interpretação da complexíssima relação afetiva da pessoa com o movimento. Corporalidade é um treco complicado. Você pode criar uma rotina lindinha segundo a mais sofisticada literatura sobre funcionalidade, só que ela inclui bola. Seu aluno responde: “NEM FODENDO! ODEIO ESSA MERDA!” E olha para você com olhar assassino. É perda de tempo tentar argumentar sobre a importância do programa fofo que você criou. O ódio dele por bola está escondido nas minhocas da história de vida dele. Amasse a planilha e crie outra.
Finalizo com uma ilustração interessante. Quando eu decidi abandonar o tratamento medicamentoso para uma condição grave, um amigo bioquímico, muito bioquímico, talvez o mais citado do país, doutor em Harvard, vaca sagrada, etc (cheio de diploma e pedigree, certo?) me questionou. Eu respondi, no final, que finalmente me sentia “feliz”. Ele perguntou “mas… você consultou algum profissional para poder afirmar isso?”
Não é piada. Em última instância, esse autoritarismo profissional que leva a gente acreditar que o diploma nos autoriza saber sempre o que é melhor para “o outro” acaba nisso: segundo meu eruditérrimo amigo, eu precisava de um atestado de felicidade conferido por um psiquiatra com CRM e membro da sociedade brasileira de psiquiatria.
Pensem…