Os livros foram ontem, dia 29, de madrugada. Eu havia tomado uma decisão, semanas atrás, de doar livros. Livros encadernados, processo industrial. Publiquei minha intenção em busca de interessados. Uma amiga se propôs a adotá-los.
Trata-se de colocar os ditos cujos em caixas e, quando todos estiverem devidamente arrumados, chamar a Lúcia. É claro que isso não é tão simples. Passaram-se semanas e eu não me mexi. Esteve muito quente, eu tive outras coisas para fazer, mas a verdade é que desentulhamento é uma das ações mais radicais que podemos fazer com nossa própria identidade. É enfiar a mão lá no fundo das camadas do tempo e remexer tudo.
Ontem, no meio da madrugada, eu resolvi atacar os livros xerocopiados. Acho que uma centena ou mais de livros xerocopiados, desde pouco antes do meu doutorado até cerca de uns 12 anos atrás. Resolvi enfiar todos em sacos plásticos grandes e colocar lá fora. Lixo, mesmo. O argumento é bastante simples e lógico: eu não manipulo estes livros há mais de uma década. Há livros sobre lingüística, história da ciência, teoria do Estado, bem estar social, democracia pluralista e até outros ainda mais antigos sobre metabolismo secundário de terpenóides (opa, não joguei tudo fora do mestrado, então). A verdade é que eu não os consulto, ponto final.
À medida que eu fui manipulando os livros, uma operação mental era deflagrada a cada um: “isso é um puta livro. Eu li há tanto tempo, não lembro mais de quase nada. É de enorme utilidade. E quem é que pode pensar o mundo sem erudição quanto à teoria do Estado e suas várias escolas?” Essa auto-tortura era confrontada, livro a livro, pelo mesmo argumento de que o livro não tinha sido consultado em anos, que se fosse necessário consultar algo sobre o assunto, a versão digital certamente não será difícil de encontrar e pronto.
A sensação é que o ato de se desfazer daquela pilha mal encadernada de papel difícil de ler nas letrinhas apagadas equivale a se desfazer de uma parte da minha memória. Jogando fora o livro sobre metáforas do Lakoff, vou esquecer os modelos lingüísticos sobre as mesmas; não vou mais articular os vários autores que escreveram sobre pluralismo; serei incapaz de me reconhecer na paisagem da história das idéias sobre evolução. Cada livro no saco, um borrão no cérebro.
Pior: jogando fora, vou esquecer que um dia isso existiu na minha vida. Como vou lembrar dos títulos de mais de 100 livros que jogo fora agora? Juro que considerei a idéia (mais torturante ainda) de anotar cada um dos itens desprezados, o que geraria uma ansiedade de dimensões astronômicas.
Então fiz o oposto: peguei os livros em pilhas, nem olhei as capas e enfiei tudo no saco preto.
Pronto: não sei o que são, o que eram, o que representavam. A partir daquele momento, não me pertencem mais. Um dia os li. Um dia, seu conteúdo foi analisado e interpretado. E como tudo que o é, algo dele integra para sempre meu sistema de produzir modelos e operações interpretativas. Não existe técnica de análise sem erudição e não existe erudição sem esquecimento. Tudo que é lido é esquecido. Mas isso é só parte da história. Esquecemos o autor, o argumento, a maneira como articula os conceitos, mas a experiência de ter se confrontado com ele é parte de nós para sempre. Talvez nem retirando fisicamente parte do nosso cérebro isso se perca, pois a memória é distribuída e difusa.
Lá pelas cinco da manhã, veio uma paz incrível. Não era exaustão, não: eu tive que me forçar a tomar um banho e tentar dormir, com o dia já amanhecendo. Era uma paz nova e desconhecida.
Não sei dar nome para essa paz. Acho que é a paz dura da convicção da posse. Podem me tirar tudo: no fundo, não tiram nada. Dos milhares de livros que li, a parte mais essencial, descolada de sua formalidade porque gerada por mim e na minha apropriação da realidade, é só minha e minha para sempre.
Olhei em volta e me dei conta de que tudo pode ser afastado, dado, jogado fora. A experiência que tudo isso me proporcionou faz parte de mim ainda que eu esteja nua, numa praia deserta. É essa experiência que me constitui e me faz quem eu sou.
Quase pegando no sono me ocorreu que o apego excessivo a certos objetos e pessoas por parte daqueles que não leram pra valer pode ser incurável, pois o corpo a corpo com o acervo civilizatório das idéias não é substituível… Fora das estatísticas, quem são, realmente, estas pessoas que nunca leram a sério? Aí eu dormi. Em paz.