O efeito placebo 2: a fonte da crença (série barreiras mentais)

Antes de abandonar a carreira acadêmica, eu fui várias coisas, mas minha marca mais forte, ou recente, ou cientificamente adulta eu deixei na área de “estudos sociais da ciência”. Faz parte da minha identidade e da forma como vejo o mundo. Algumas publicações “experimentais” sobre a representação social da ciência, legimidade e outros itens da agenda desta área são antológicos (até mesmo por serem “meta-experimentos”) e talvez o mais de todos seja aquele conhecido como “Milgram experiment”. Em 1963, Stanley Milgram conduziu um experimento para testar a obediência das pessoas a autoridades externas, se conflitantes com suas convicções morais. O experimento foi projetado da seguinte forma: voluntários foram recrutados para participar de um estudo (“fake”) sobre aprendizado e punição. Eles deveriam aplicar um eletro-choque em um sujeito em outra sala em quem um teste estava sendo aplicado. Se o sujeito acertasse, o voluntário deveria ler a questão seguinte. Se errasse, deveria aplicar o choque. A cada erro, a voltagem deveria aumentar, até níveis potencialmente letais. Esperava-se que apenas 1,2% de indivíduos excessivamente sádicos chegassem a níveis letais de voltagem. O experimento, no entanto, demonstrou que 65% dos participantes o fizeram, ainda que alguns, relutantes. O “coordenador do estudo”, vestido de jaleco branco, supostamente um biólogo, estimulava o voluntário a continuar a cada hesitação, sem demonstrar emoção.

A discussão em torno dos resultados deste estudo perdura até hoje. Uma das conclusões principais é que, em nome de uma autoridade muito forte, qualquer outro entrave ao comportamento é suspenso. A autoridade, ou fonte de legitimidade da ordem, para os voluntários, era a soberana CIÊNCIA.

Nos estudos sobre placebo publicados até hoje, muito provavelmente é a mesma fonte de legitimidade que permitiu imprimir a certeza de eficácia na mente dos sujeitos experimentais.

Pois bem: a semana retrasada, no meu treino de supino, executei 4 séries de 4 repetições com 68kg (sem equipamento). Utilizando duas ou três calculadoras on-line (existem inúmeras no super-site www.bodybuilding.com , todas baseadas em fórmulas devidamente avalisadas e bem publicadas), cheguei a um valor de 1RM de 75kg. Todos nós que estudamos um pouco mais sobre treinamento de força sabemos que estas formulas foram criadas por análises de regressão, em pesquisas bem conduzidas, e têm uma precisão particularmente alta para indivíduos treinados e no supino (Pereira e Gomes 2003, Chromiac et al).

Na semana seguinte, fiz um pequeno teste de carga e cheguei num levantamento de 1RM de previsíveis 75kg.

A pergunta é: o que são esses 75kg? São realmente minha carga máxima executável em condições de academia, com uma perna quebrada levantada? São mais uma comprovação de que a fórmula descreve bem o fenômeno biológico? Ou são o produto da minha adesão inconsciente a tudo que tenha sido bem publicado, numa revista científica de boa qualidade, por causa do tipo de formação que recebi? Se eu fosse religiosa, valeria mais a previsão de um sacerdote que dissesse: “seu 1RM é 70kg” ou “82kg”? Nesse caso, qual seria a carga que eu de fato executaria naquele dia? Se eu tivesse um técnico em quem confiasse cegamente e que me dissesse: “você pode levantar 85kg raw porque minha experiência diz que sim”. Valeria mais do que a fórmula?

Nunca saberemos. O fato é que eu sou essa Marilia cientista, fruto da mesma sociedade onde 65% das pessoas confia na ciência a ponto matar seu semelhante em nome dela, uma pessoa sem nenhuma formação religiosa e sem técnico. A “crença” que fui capaz de gerar em mim mesma foi criada com a ferramenta que terceiros, que nem conheço, geraram em condições experimentais que não faço idéia.

Minha opinião? Foi a crença. Muito poderosa. Mas pode ser substituída com bastante liberdade por outras, desde que eu assim decida. E agora?

 

Marilia

BodyStuff

 

Referências bibliográficas:

 

O experimento de Milgram

 

Milgram, Stanley (1963). “Behavioral Study of Obedience“. Journal of Abnormal and Social Psychology 67: 371–378. (link para o *.pdf do texto integral).

 

PEREIRA, Marta Inez Rodrigues and GOMES, Paulo Sergio Chagas. Muscular strength and endurance tests: reliability and prediction of one repetition maximum – Review and new evidences. Rev Bras Med Esporte. [online]. 2003, vol. 9, no. 5 [cited 2007-07-23], pp. 325-335. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-86922003000500007&lng=en&nrm=iso  ISSN 1517-8692

 

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