Guerras sectárias no esporte, partidos e igrejas

Quando eu tinha uns 12 anos me dei conta de que o mundo estava basicamente errado. A coisa mais errada no mundo era, em primeiro lugar, a injustiça; em segundo, a falta de liberdade; e em terceiro, a falta de racionalidade. Era o ano de 1975 – fichas diversas caiam: o tempo vivido no Sul dos Estados Unidos e a feia segregação racial, a ditadura aqui no Brasil e as relações de gênero que eu não aceitava (por que meu pai podia trabalhar – na minha cabeça, um direito e não um dever, pois ele é um cientista – sujar pratos e roupas e minha mãe apenas lavá-los?). Nesse ano, alguns amigos do meu irmão, militantes do Partido Comunista Brasileiros, foram presos e torturados.

Todos os meus sonhos de um mundo onde as necessidades fossem supridas, a liberdade fosse respeitada e as recompensas fossem justas ficavam divididos: também foi o ano em que passei a me envolver mais com o esporte e decidir que queria ser uma cientista, ambos atividades supostamente meritocráticas.

Mas, com 14 anos, acabou o dilema: decretou-se que havia chegado o meu momento e eu fui “recrutada” para o Partido. Devidamente educada na literatura marxista, achava que era meu dever histórico. Com muita tristeza e lágrimas escondidas, disse adeus à vida de atleta, de pensadora, de ser humano e me entreguei de corpo e alma à militância. Fiquei um tempo no Partidão e depois fui para um partido trotskista, na época chamado Convergência Socialista.

Tudo de pior que se possa imaginar aconteceu comigo nesses partidos: violência física, psicológica, sexual e intelectual. Sim, porque ser privada do direito de estudar (“desvio pequeno burguês”), de fazer esporte (“desvio pequeno burguês”) e de escolher quem ou como faria sexo comigo estão mais ou menos no mesmo patamar. Fora viver na sujeira, comer comida estragada, entre outras coisas inaceitáveis e inacreditáveis.

Aprendi que entre os meus sonhos de uma humanidade melhor e o discurso dos “companheiros” havia apenas uma coincidência de forma, ou seja: as palavras. O desejo deles era apenas o poder, o prazer pela luta sectária, o desejo sádico de dominar e subjugar o outro. Com eles e neles, vi o pior do ser humano.

Bem, passou. Voltei para a universidade, onde me dediquei à ciência, patrimônio universal da humanidade, área do reconhecimento por mérito e da partilha do saber. Certo? Errado. De meritocracia, vi muito pouco. De trocas espúrias de interesses, lutas por poder, sabotagens às carreiras uns dos outros e machismo, vi muito. Menos que nos partidos? Bem menos, mas tanto a ponto de me fazer virar as costas e optar por uma vida bem mais marginal ao sistema.

Aqui, no meu canto, onde me acho feliz, me dedico da maneira que acho certa aos meus sonhos. Sem partido nenhum, sem programa político nenhum, tento, com meus amigos em Paraisópolis, numa escala bem pequenininha, inventar relações mais humanas e mais justas.

De volta ao esporte, busco a satisfação do companheirismo, o prazer do jogo, o respeito ao corpo e a recompensa por mérito.

Eis que me surgem novamente as guerras sectárias. No powerlifting, existem várias federações. Algumas pessoas são ecumênicas e conseguem se relacionar com todos. Nos olhos de outros, vejo – agora me dou conta – o mesmo tesão sectário que via nos “companheiros” no final dos anos 70. Nas palavras ferinas, o desejo de sabotar “o outro”. O jogo deles não é no tablado: é nos bastidores.

Um dia passei pela experiência inevitável do “estranhamento”. Numa discussão sobre o equipamento para execução de um levantamento, lá pelas tantas percebi que eu falava sobre biomecânica e eles sobre política. Quando percebi isso, fiquei muito confusa e frustrada. Frustrada e com raiva. E finalmente muito triste.

Tudo aquilo que rejeitei como forma de morte, e não de vida, estava de novo ali, batendo na minha porta. Deixaria entrar?

Resolvi que não. A todos que preferem as guerras sectárias, a caça às bruxas, a humilhação dos “inimigos”, ao incentivo desinteressado ao esporte, viro as costas.

 

Marilia

BodyStuff

 

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