Este é mais um dos artigos relacionados à Assembléia do Strongman brasileiro, mas que é bem possível que tenha aplicabilidade mais ampla.
Uns meses atrás, lembro de ter feito um apelo às namoradas, esposas e companheiras de atletas para que não inventassem encrenca em período pré-competitivo. Muita gente achou engraçado. De fato, o tom do texto era ligeiramente cômico. O tema não.
Infelizmente o problema aí não é o atleta, a namorada, o esporte ou a competição. O problema aí é um modelo dominante de relacionamento onde as partes se investem de direitos sobre a vida do outro, direito este não garantido constitucionalmente e eticamente reprovado por todos os sistemas respeitados vigentes no século XXI. É o modelo segundo o qual as decisões individuais não são de esfera individual, e sim deste coletivo chamado “casal” ou “família”. Uma parte de vocês lendo isso, especialmente as mulheres mais conservadoras, vai torcer fortemente o nariz.
Parênteses teatral: “como você, Marília, uma feminista, coloca no banco dos réus as mulheres conservadoras?” Resposta 1: porque nos esportes, especialmente os esportes de força, a esmagadora maioria dos casos de sabotagem da carreira esportiva e do envolvimento com o esporte em geral parte da mulher conservadora; Corolário 1: porque a esmagadora maioria dos atletas é homem; 3. Porque a esmagadora maioria das pouquíssimas mulheres que tiveram sucesso nestes esportes têm como companheiros seus técnicos, outros atletas ou não têm relações estáveis com ninguém; 4. Corolário 3: quem disse que mulheres não são tão machistas quanto homens? O machismo não está no indivíduo, está na sociedade. O indivíduo atua ou não de forma consistente com o machismo.
Muitas pessoas me criticam por ser uma ferrenha militante “anti-família” ou “anti-casal”. Não é verdade, embora minhas críticas aos modelos de relacionamento dominantes não seja segredo de ninguém. No entanto, como defensora, sim, da prevalência da decisão pessoal e da não interferência de qualquer outra instância (Estado, escola, igreja, família, etc) na mesma, eu acho que se as partes concordam que devem investir num contrato que implique num investimento simétrico e proporcionalmente majoritário (que consuma a maior parte dos recursos financeiros, temporais e emocionais) no tal “projeto coletivo” do casal, que o façam. É problema de cada um.
Traduzindo: se os dois acham que devem investir a maior parte da sua energia, esforço, grana e tudo mais na manutenção do próprio casal, que o faça.
Só tem um problema: ninguém pode ser nem atleta de alto rendimento, nem artista de alto rendimento e nem cientista de alto rendimento (provavelmente também não empresário de alto rendimento) num sistema desses. A matemática é simples: o “alto rendimento”, por definição, é algo que absorve uma parte relevante da energia da pessoa. Vamos colocar isso em números: 45% hipotéticos de um “investimento de energia” (supondo que conseguíssemos chegar a esse indicador por uma equação que incluísse envolvimento emocional, tempo de dedicação prática, tempo de dedicação de pensamento e recursos financeiros) iriam para o projeto prioritário (esporte, arte ou ciência). Pelo menos 30% vão para a manutenção física do indivíduo (trabalho, busca de alimento, infra-estrutura, etc). Sobram 25%. O cônjuge que entrou na parceria pelo contrato de investimento prioritário vai chiar. Afinal, ele ficou com 25%, e não com os 45% que estão indo para o outro projeto.
Na cabeça torta de muita gente, isso é traduzido como “amar menos”. Se ele (ou ela) investe menos desse indicador hipotético de energia em “nós” (o tal projeto-casal) do que no esporte, na arte ou na ciência, quer dizer que ama menos. Não existe fundamento nenhum nisso. Por nenhum argumento que se busque, essa afirmação encontra pé na lógica.
Mas como vivemos numa sociedade hipócrita, a sabotagem se direciona somente para aqueles cujo investimento prioritário representa criação não-remunerada, sonho pessoal, prazer e SENTIDO. Se o companheiro estivesse dedicando não 45%, mas 65% de seu investimento numa empresa bem sucedida, 30% na manutenção física (comer,dormir, etc.) e apenas 5% no projeto-família, o cônjuge não reclamaria. Digo isso porque em geral não reclama, pelo contrário, celebra: “meu marido é um empresário bem-sucedido, veja como ele se dedica para nos proporcionar bem-estar” (e carros novos, luxo, futilidades, etc.).
Pessoalmente, eu só acho isso triste e idiota. Como participante de equipes desportivas, no entanto, me vejo na obrigação de esclarecer o fato de que todo indivíduo excelente no que faz é um monomaníaco. É alguém movido pelo desejo de investir o melhor de sua energia naquilo que lhe dá SENTIDO.
E, caro leitor, não existe solta pelo mundo essa abstração chamada de “sentido da vida”. Ela é construída por cada um. O indivíduo de alto rendimento só o é porque construiu como sentido para si aquele feito (o esporte, a arte, a ciência, seja lá o que for).
Os afetos deste indivíduo não são menores. Pelo contrário, podem ser mais harmônicos, pois só consegue amar com menos ambivalência quem está mais em paz consigo mesmo.
É natural que esse indivíduo tenha muito menos interesse em atividades que dissipem energia, como festinhas, comprinhas e outras “inhas”. Todas estas “inhas” ocupam um vazio de significado ou mesmo uma forma de passar o tempo, nada condenável, mas completamente contraditória com o alto rendimento daquele que o tem.
Relacionar-se com alguém de alto rendimento implica entender que a maior parte do interesse dele (o tal indicador abstrato de energia despendida) está naquilo que ele faz bem.
É por isso que esta atividade é a PROFISSÃO dele, ainda que não remunerada. Sem entrar na conceituação de profissão como atividade codificada por parâmetros de execução, qualidade e organização, nesse caso a PROFISSÃO está separada do TRABALHO.
Nesse momento escuto: “mas não sendo um atleta profissional, não pode ser profissão”. Pode sim. E – novidade para você – o atleta profissional moderno também tem seu TRABALHO, que não é treinar, competir, comer e dormir. É um trabalho como qualquer outro, com coisas chatas e boas, mas que tem como objetivo principal gerar remuneração.
Assim, não há nada mais egoísta, mesquinho, desprezível e contraditório com as hipócritas juras de amor do que sabotar a atividade esportiva de um atleta de alto rendimento.
Se é o seu caso, só posso lamentar a dimensão diminutiva da sua vida. Mas se a sua sabotagem interfere na ação do grupo ao qual eu pertenço e do qual necessito para a MINHA profissão, você ME atrapalha e eu peço, no momento com educação, que você modifique seu comportamento. Num segundo momento, peço que o casal se vire – do jeito que quiser – para definir que modelo adota. E se o par sabotador não desistir de sabotar, sinceramente eu gostaria que o casal todo se afastasse de nós.
Eu não preciso de um atleta com cônjuge pentelho, sabotador e de alta interferência numa atividade que este indivíduo pratica comigo. Prefiro vocês todos fora da minha vida.
Já os cônjuges e famílias que apóiam e somam, como a minha, merecem todo meu carinho e gratidão. Melhor ainda: são parceiros.