Jogos, esporte e esporte moderno: colocando pontos nos i’s
Talvez pelo benefício da maturidade, eu não me caso. Não me caso com modelos, não me caso com teorias, nem com ideologias ou religiões – nada disso. Isso evita sectarismo e cegueira. No entanto, é preciso negociar parâmetros mínimos de entendimento de termos e conceitos para que se possa dialogar com um “outro”. Comunicar uma idéia ou tese a muitos, então, requer que antes de mais nada tenhamos a serenidade para admitir que raramente há consenso quanto a eles.
O tema desta discussão é um convite a essa armadilha comunicativa e, se não tomarmos alguns cuidados básicos, logo estaremos todos berrando numa Babel esportiva. Por “esporte”, “jogo”, “regra” ou “federação”, cinco pessoas podem estar se referindo a coisas inteiramente diferentes e não-tradutíveis, usando exatamente as mesmas palavras.
Guttman (2007, p.1-3) define esporte dentro do contexto dos conceitos de brincadeira (play), jogo (game) e disputa (contest). A brincadeira seria uma expressão humana universal de atividade “autotélica”, ou seja, governada por seus próprios propósitos. As brincadeiras podem ser espontâneas ou organizadas. Uma brincadeira espontânea seria o ato de jogar pedrinhas num lago. Brincadeiras organizadas, determinadas por códigos ou regras, seriam brincar de casinha, palavras-cruzadas, jogo da memória, bolinha de gude ou basquete. Para Guttman, as brincadeiras organizadas são “jogos”. Os jogos, por sua vez, podem ser competitivos ou não competitivos. Brincar de casinha ou palavras-cruzadas não são competitivos, enquanto jogo da memória, bolinha de gude ou basquete são. Os jogos competitivos seriam as disputas (contests), os quais, segundo o autor, podem ser divididos entre aqueles que dependem de habilidades físicas e os que não dependem. O esporte seria a disputa que depende de habilidades físicas. No modelo de Guttman, o jogo da memória (assim como o xadrez) não seriam esportes, enquanto a bolinha de gude e o basquete seriam.
É um modelo muito interessante, mas problemático: o primeiro problema que tenho certeza que o leitor identificou é o enquadramento do xadrez. “Mas o xadrez não é inclusive um esporte olímpico??”, pergunta, perplexo. Sim, é. Guttman não concorda, o Comitê Olímpico sim. Guttman é um historiador, o Comitê Olímpico é o Órgão de Governança[i] Máximo do esporte moderno – o Comitê Olímpico ganha, na opinião pública.
Há um segundo problema menos óbvio, mas mais interessante no que diz respeito ao tema de nossa discussão. E o jogo de bolinha de gude? Tem regras mais ou menos definidas (mas que precisam ser negociadas pela molecada a cada partida), depende de habilidades físicas e é competitivo. Quem ganhar é inclusive premiado, em geral, com as bolinhas de gude dos demais jogadores. Jogo de bolinha de gude é esporte? Guttman possivelmente diria que sim, mas o bom-senso e boa parte dos sociólogos e historiadores do esporte diriam que não[ii]. Ao contrário do basquete, o jogo de bolinha de gude não foi INSTITUCIONALIZADO.
Os mais radicais dizem peremptoriamente que se não está institucionalizado, não é ESPORTE, ponto final. Isso excluiria todas as formas de jogo precursoras do que hoje conhecemos como lançamento de dardo, corrida e outras práticas que têm registros antigos, até mesmo nos jogos Pan-Helênicos.
Para dar mais precisão e rigor à discussão, e ao mesmo tempo silenciar o sectarismo, vou me referir ao “esporte moderno” como jogo institucionalizado.
As questões que justificaram este debate sobre a natureza, estado atual e contradições das federações esportivas pertencem ao contexto do esporte moderno, plenamente institucionalizado e inserido numa realidade econômica complexa. Todos os problemas que emergem destas contradições – representatividade, democracia participativa, profissionalização, amadorismo e apoio financeiro, papel social do esporte de alto rendimento, entre outros – pertencem a este cenário, e não às formas precursoras.
No entanto, assim como não se podem compreender os conflitos e jogos de interesses envolvidos nas guerras federativas ou na comercialização de eventos e profissionalização de atletas fora desta realidade moderna, não se podem entender parte das contradições individuais dos praticantes com tudo isso sem considerar a milenar história das práticas precursoras do esporte moderno. O ethos de honra e disciplina, fraternidade e devoção herdados de tradições marciais ou guerreiras ocidentais batem de frente com boa parte da lógica política, econômica e institucional do esporte moderno.
Esse conflito de forma alguma expressa um passado “bom” e um presente “ruim” e nem vice-versa. No entanto, os valores tradicionais fazem parte da identidade do praticante e da prática – que modernamente se transformou em esporte. Peguemos, por exemplo, as artes marciais asiáticas. O berço original da maioria delas é uma China antiga imersa em mitos, da qual temos conhecimento através de registros arqueológicos e relatos escritos quase dois mil anos depois dos eventos e situações. Durante estes primeiros milênios e até boa parte da era cristã, as artes marciais eram práticas transmitidas por linhagem familiar e monástica, regidas por códigos de ética muito influenciados pelas religiões locais (budismo, zen-budismo, taoísmo e xintoísmo). No século XX elas passaram por grandes transformações, no compasso da turbulência política atravessada pela China e outros países asiáticos. Tornaram-se práticas culturais de “coesão nacional”, depois ferramentas de combate desarmado de organismos militares até chegar à condição de ESPORTES DE COMBATE. Sejamos sinceros: é impossível (e indesejável) que estes modernos esportes de combate não tragam marcas profundas de seu passado tradicional. Mesmo que o jovem atleta de tae-kwon-do, hoje um esporte olímpico, não faça a mais remota idéia do que sejam as guerras endêmicas que varreram a Ásia quando seu esporte foi formado e muito menos tenha noções de disciplina monástica, em sua formação existem elementos que remontam a esta origem. A retidão moral, as virtudes variadas, a devoção filial ao mestre acabam se chocando contra a lógica dos jogos de interesses federativos, satisfação do patrocinador e profissionalização (ou “quasi”-profissionalização).
Não há nada de errado com a profissionalização. Inúmeros estudiosos mostraram, através de cuidadosas pesquisas históricas, como a profissionalização levou à democratização dos esportes. Antes privilégio de aristocratas e burgueses – os “amadores”, que podiam praticar por “amor” e sem remuneração os mesmo por vantajosa condição familiar -, estes esportes passaram a ser praticados por atletas vindos das classes trabalhadoras quando foram remunerados.
Assim como a institucionalização, a profissionalização do esporte é um fenômeno do século XIX e XX.
As federações esportivas, ou “organismos de governança do desporto”, são os cenários organizativos e fóruns onde desembocam todos os interesses políticos e econômicos que dão forma ao esporte moderno. Nem boas, nem ruins, as federações são elementos constitutivos do esporte moderno. Assim como sua origem tem uma história documentada e narrável, sua dinâmica pode ser analisada segundo as forças em operação. A existência de federações únicas por esporte naqueles que são olímpicos tem uma origem e um mecanismo de controle. A multiplicidade de federações em outros esportes obedece a dinâmicas igualmente analisáveis.
Como a neutralidade é tão hipócrita quanto ignorar a complexidade estrutural da realidade, opto por explicitar minha tese e também meus princípios normativos. A tese é a de que, da mesma forma que um conjunto de determinantes históricos levaram a formação de estruturas de governança no esporte (federações) de caráter monopolístico e unificado até os anos 1950-1980, outros tantos fatores de uma nova realidade econômica e política, características da globalização contemporânea, contribuem para a diversificação e diferenciação das formas organizativas. Nenhuma das duas é intrinsecamente boa nem ruim: ambas contém elementos de perversidade e vantagens relativas a este ou aquele ator do cenário esportivo. Se existem “lados”, o meu é o do bem-estar e respeito ao atleta e praticante do esporte, bem como o da defesa do benéfico papel social e cultural do esporte – seja ele de alto rendimento ou comunitário. Assim, ao mesmo tempo em que o exercício autoritário do monopólio político por parte de dirigentes federativos é indesejável e contra os interesses maiores da humanidade, o retorno a estruturas desregradas onde caciques locais imperam é ainda mais nefasta.
O dilema que todos enfrentamos só pode ser resolvido com transparência e corajoso enfrentamento das insatisfações e problemas identificados amplamente por atletas de todas as partes do mundo.
Que venha a roupa suja: nós a lavaremos com o sabão da inteligência, da ética e do bom-senso.
O esporte moderno e o nascimento das Organizações de Governança do Esporte
Este “esporte moderno” do qual estamos falando nasceu no século XIX, na Inglaterra, com a institucionalização do futebol e outros esportes. Este formato vem se difundindo para outras práticas corporais e jogos até hoje.
O exemplo ilustrativo do futebol e rugby é de um jogo originalmente sem regras escritas cujas origens remontam ao século XIV. Praticado por multidões e de natureza arruaceira, essa atividade permaneceu uma de tantas outras atividades pré-industriais até cerca de 1750, quando foi incorporado pelas escolas públicas inglesas. O jogo, então, passou a sofrer um processo de normatização e imposições disciplinares, analogamente a outras atividades dos estudantes sob o poder da burocracia da escola. A partir de 1840 estes jogos, agora já disciplinados, viveram uma turbulência de conflitos sobre regras, ao mesmo tempo em que se formaram clubes independentes para sua prática.
O resultado foi a bifurcação entre o rugby e o futebol. Numa discussão acalorada que ganhou a grande imprensa, diversos atores envolvidos no que ficou conhecido como a “rivalidade Eton-Rugby” criaram a Football Association (FA) em 1863 e a Rugby Football Union (RFU) em 1871. Os conflitos, que se manifestavam principalmente em divergências quanto a regras, amadureceram e geraram as primeiras expressões das Organizações de Governança do Desporto. (Dunning et al 2004, p. 47).
Governança e os jogos Olímpicos
O surgimento das ligas e federações por esporte foi seguido pelo fenômeno das Olimpíadas da Era moderna.
As Olimpíadas da Era Moderna começaram como uma criação intelectual do Barão de Coubertin e seus associados, que projetaram uma atividade internacional recorrente a cada quatro anos onde o orgulho nacional se expressasse sob a forma de feitos esportivos. A força motriz por trás desta iniciativa era a humilhação francesa pela derrota de 1871 na guerra franco-prussiana. Desde sua primeira versão em 1896, em Atenas, até hoje, os jogos foram marcados pela rivalidade nacional contida e regulamentada por uma burocracia organizativa que foi se tornando cada vez mais complexa. Desde 1908, Comitês Olímpicos Nacionais foram envolvidos na organização dos eventos, os quais passaram rapidamente a se estruturar em cada país. O Comitê Olímpico Internacional funciona com duas redes de organizações de governança esportiva: os Comitês Olímpicos Nacionais e as Federações Internacionais por Esporte. O que o COI faz é aprovar ou não uma modalidade como esporte olímpico, entronizando uma Federação Internacional como seu representante oficial. A partir daí, a organização de fato dos eventos competitivos compete às duas estruturas mencionadas (Senn 1999).
Os interesses políticos e econômicos que foram sendo catalisados pelos jogos olímpicos se converteram em concentração de poder nas Federações Internacionais e nos Comitês Olímpicos Nacionais. Esta concentração só aumentou após a segunda guerra mundial, quando as Olimpíadas se transformaram num palco de disputa ideológica cujos bastidores eram a contra-partida esportiva e técnica da Guerra Fria. Valia tudo quando o preço era o maior número de medalhas olímpicas.
O outro fator decisivo para a concentração de poder e importância nestes órgãos de governança foi o crescimento da indústria do esporte, comandada pela indústria de equipamentos e a indústria de entretenimento, particularmente a transmissão televisiva dos jogos.
Com a exigência de Federações internacionais unificadas por esporte, com organismos nacionais análogos em âmbito local, os esportes adquiriam uma maior padronização. Ao mesmo tempo, na prática se instalou um monopólio absoluto de direitos políticos e econômicos sobre as atividades de cada esporte. Este monopólio se expressa tanto no que diz respeito à legitimidade de negociação junto a órgãos governamentais, como na manipulação de direitos de transmissão de imagem e outras iniciativas de implicação econômica (Andreff & Szymanski 2006, p. 228-249).
As federações, o poder e o atleta
Essa sensação desconfortável que muitos atletas sentem ao serem inseridos nos sistemas federativos de que “esse negócio não é bem meu” foi estudada por sociólogos e antropólogos.
Vimos que as Federações, ou Órgãos de Governança do Desporto, são as formas organizativas que o processo de institucionalização do esporte assume. Quando falamos de “institucionalização”, em geral nos referimos a padrões característicos de relações sociais reconhecidas, estabelecidas e codificadas, de relações sociais que definem a forma legítima de se engajar numa determinada atividade. Institucionalização, portanto, refere-se fundamentalmente a regras de procedimento e regras de relacionamento entre os agentes sociais. No esporte, isso significou garantir que um determinado conjunto de regras se tornasse amplamente aceito como a “forma certa” de jogar o que antes era jogo, e agora é esporte (Gruneau 1999, p.34). Esta estruturação do esporte de forma cada vez mais sistematizada e formalizada aliena progressivamente os praticantes individuais da atividade em si. Assim com na sociedade, de maneira geral, o “Estado” (as organizações de governança) adquire vida independente e passa a ser cenário de um jogo de poder com agentes investidos para tanto, com controle cada vez mais indireto (e menor) do “cidadão” (o atleta).
O futuro da organização no esporte
Não há como fazer uma previsão segura quanto ao futuro da governança no esporte moderno. Mesmo assim, algumas tendências podem ser identificadas.
Andreff e Szymanski relatam que o crescimento do esporte institucionalizado nas últimas décadas foi significativo. No entanto, mais importantes em termos de tendências mundiais seriam a expansão geral, a diversificação e a diferenciação. Originalmente, para praticar um esporte era necessário fazer parte de um clube ou escola, e, portanto, de uma federação. Estimativas de estudos realizados na França mostram os caminhos percorridos desde essa institucionalização inicial. Em 1950, havia 2 milhões de pessoas filiadas a federações; em 1960, 3 milhões, em 1983, 10 milhões; e em 2005, 14 milhões. Um survey do ano 2000, no entanto, mostrou que 36 milhões de pessoas entre 15 e 75 anos praticavam algum esporte. Outro estudo mostrou que 54% da população francesa praticava alguma forma de atividade esportiva sem ter vínculos com federações (Andreff & Szymanski 2006).
As tendências apontadas por Andreff e Szymanski são facilmente observadas em inúmeros esportes, onde surgem variações e modalidades especiais de cada um. Cada um conquista um público próprio e adota suas próprias formas organizativas.
O kung-fu/wushu possui três federações internacionais lutando por hegemonia. O powerlifting, do qual eu sou praticante, possui mais de 10 federações internacionais. Ao mesmo tempo em que as regras e procedimentos se diferenciam cada vez mais, a circulação de praticantes entre elas aumenta. Com a flexibilização política expressa nos esportes não-olímpicos, o atleta tem adotado cada vez mais a atitude de um consumidor moderno, que valoriza a diversidade de opções sem oferecer sua fidelidade exclusiva a ninguém. O lado perverso dessa realidade é que a maior parte das federações se comporta como a empresa fornecedora dessa “mercadoria” na qual se converteu a organização de eventos competitivos. A questão da participação representativa e democracia foi simplesmente suprimida.
Se existe um desejo de participação nas decisões coletivas e democracia participativa e se esse desejo resultará em formas de governança representativas no esporte, não é possível prever. O que o presente sugere é a manutenção da tendência onde convivem organizações de governança com características mais ou menos empresariais, num gradiente que vai desde as diretamente lucrativas e proprietárias até aquelas sem fins lucrativos e de finalidade social.
Estas são idéias para se pensar problemas que todos enfrentamos. Como afirmei no primeiro parágrafo deste ensaio, eu não me caso com modelos e nem tenho fidelidade a idéias, exceto se forem princípios. Estes eu já afirmei e giram em torno da justiça e da verdade. O mais importante para orientar nossa ação diante de um cenário complexo é compreendê-lo. Assim, podemos construir uma imagem mais realista do mesmo. Depois disso, fica por conta da ética de cada um ficar do “lado certo da fotografia”. Mas esta, a ética, é uma outra história, que fica para uma outra vez.
Referências bibliográficas
Guttmann, A. 2007. Sports: The First Five Millennia. University of Massachusetts Press.
Dunning, E. Et al. 2004. Sport Histories: Figurational Studies in the Development of Modern Sport. Routledge.
Gruneau, R.S. 1999. Class, Sports, and Social Development. Human Kinects.
Andreff, W. & Szymanskim, S. 2006. Handbook on the Economics of Sport. Edward Elgar Publishing.
Senn, A. 1999. Power, Politics, and the Olympic Games: a history of the power brokers, events, and controversies that shaped the Games. Human Kinetics.
Allison, Lincoln, ed. 1986. The Politics of Sport. Manchester: University of Manchester Press, 1986. Pp. 264.