ou “os vários mundos de Marilia”
Eu cresci num mundo de mulheres fortes. Minha avó era um gênio musical, pianista e professora de piano do Conservatório Dramático e Musical, onde formou grandes pianistas. O mundo dela era duro e as exigências extremas. Nada menos que a excelência era aceitável. O avô que em algum tempo devia ter existido para que ela fosse avó era irrelevante: minha mãe me levou umas duas vezes para visitar um velho moribundo com uma família esquisita – aquele que ele formou depois de abandonar a mulher forte que forneceu os melhores 25% do meu genoma forte. Os outros dois avós (todo mundo tem quatro, mas eu só conto uma) são irrelevantes.
Minha mãe é uma mulher forte. Conheceu meu pai durante a graduação em História Natural. Ela se especializou em fisiologia animal e ele em mineralogia. Casaram, mas Paulo Sawaya, então homem forte na História Natural na USP, homem de triste memória, que muito contribuiu para atrasar a ciência brasileira, declarou que “mulher de Coutinho” não seria contratada: a família aristocrática de meu pai era amiga dos conservadoríssimos Sawaya e minha mãe não teve espaço para prosseguir em sua carreira. Esse mesmo Sawaya foi responsável por manter Paulo Vanzolini, um dos maiores cientistas brasileiros, fora da USP, entregou a própria sobrinha, Marilda Sawaya, ao DEOPS, apropriou-se de bens da USP, entre outras iniciativas engrandecedoras da tradição acadêmica brasileira.
Minha mãe e meu pai são iconoclastas e ateus. Minha mãe me levou para conhecer mosaicos na igreja Nossa Senhora do Brasil e se divertiu muito quando eu disse a ela que o papo do padre estava “cheirando a religião”. Me disse para não pegar as cobras (venenosas) que meu pai pegava, mas me ensinou a pegar aranhas (venenosas) com vidros de maionese para levar ao Butantã. Isso tudo quando eu tinha uns 5 anos de idade. Mais ou menos nessa época eu ouvi pela primeira vez a palavra “noiva”, que ela me explicou ser algo que não existia mais, pois era parte de um ritual antiquado do século XIX.
Meu pai ia para “a escola” e muito cedo eu sabia que a vida era feita de escola de criança, depois colegial, depois faculdade, depois mestrado, depois doutorado e depois ir embora do país. Depois de tudo isso, morava-se na escola para sempre, sem ter que fazer provas. Era assim – ponto final.
Nessa parte precoce da minha vida, minha mãe abriu um sapo para me mostrar os órgãos, me levou numa visita a uma amiga dela zoóloga de inverterbrados, que me deixou brincar com uma caranguejeira. Minha mãe me ensinou a pegar corretamente caranguejos e siris sem ser mordida entre outras centenas de bichos.
Minha madrinha era pediatra.
Homens e mulheres moravam na USP. Os primeiros médicos com quem convivi eram minha tia e dois tios.
Nesse mundo em que eu fui criada, o que eu vi foram homens puxando as carreiras de mulheres para trás (meu pai não, mas o ex-marido da minha avó, o Sawaya e tantos outros que muito cedo eu saquei que não eram legais). Havia as tias, mas eu tive pouco contato com elas.
Eu cresci dentro de uma bolha, a bolha da USP. Durante parte da minha adolescência, os partidos de esquerda fizeram um estrago tão grande na minha vida, emocional, intelectual e fisica, que eu me escondi de volta na bolha assim que consegui fugir deles.
Só lá pelos 40 anos, quando eu saí da bolha e mudei radicalmente minhas opções profissionais, é que tive contato “de primeira mão” com gente careta, que é a imensa e esmadora maioria dos homens e mulheres. Eles não estavam mais nos papers e livros de antropologia e sociologia. Não estavam mais só em reportagens nos jornais. Eles não eram só coisas vivas ocupando espaço nas ruas, metrôs e repartições públicas. Não eram só parte da “obrigação revolucionária” urgente e abstrata, porque existiam iniquidades horríveis “lá longe”, porém predominantes, que precisavam ser mudadas. Não: agora eram humanos de verdade com os quais eu passei a ter interação de fato.
Morreu alí o mito do coitadinho. Os homens e mulheres caretas não são nada coitadinhos. Em primeiro lugar, são e serão para sempre emocionalmente incompreensíveis para mim. Eu os “compreendo” weberianamente, mas não tenho qualquer empatia. Se estão longe, me causam uma certa apreensão (para que continuem longe). Se estão perto, medo, raiva e desprezo – em mistura e alternância. São perigosos. Uma parte se declarou publicamente minha inimiga. É esquisito esse negócio de ter inimigos públicos.
Hoje eu sei que fui e sou hostilizada e agredida em situações de manifestação de poder ou excelência (minha) por ser mulher. Mas ainda não faz sentido: mesmo que naquele mundo da minha infância isso existisse, e existia, era opaco para mim pelo fato das mulheres fortes terem me exposto emocionalmente a outra realidade. Meu avô era um velho moribundo enquanto minha avó era aquela pessoa poderosa que sentava no piano e produzia mágica enquanto a gente ficava hipnotizado no sofá escutando. Só muito depois eu fui saber e entender a violência dele na vida dela. Minha mãe era essa mulher poderosa que geranciava a vida de cinco pessoas e, assim como minha avó, esperava de cada um de nós nada menos do que a excelência. Elas nunca tiveram que dizer isso: era óbvio, sempre foi óbvio. E era bom.
Em 1999 eu ouvi, pela primeira vez, uma mulher dizer para mim que tinha apanhado ferozmente do companheiro. Ela e outras: era um grupo de pessoas que viviam relacionamentos abusivos (eu também vivia um e não tinha nenhuma ferramenta para administrá-lo). Foi em Gainesville, Florida. Nesse momento eu já sabia (ou não sabia?) que o pai da minha mãe havia batido na minha avó.
Eu vivi um único relacionamento assimétrico na vida. Mentira: um assimétrico em desvantagem para mim. Os demais foram em desvantagem para o parceiro: quem tinha mais poder, articulação, violência e erudição era sempre eu.
Do assimétrico para mim não gostei nada. Gosto do cara, admiro muito e somos amigos hoje. O casamento, no entanto – meudeusdocéu, nunca mais.
Tive uns amantes simétricos, mas aí é moleza: nem eles se metiam na minha vida, nem eu na deles. Provavelmente seriam assimétricos se virassem relacionamentos “de verdade” e aí seria um inferno.
Quando eu finalmente acho que tive maturidade para eventualmente ter relacionamentos simétricos, minha vida profissional e escolhas existenciais profundas me jogaram no universo conservador e machista dos esportes de força. E aí dançou: o abismo de representações torna qualquer relação amorosa impossível (ou suficientemente contraditória para não durar nada).
A primeira coisa que aconteceu foi aparecer na minha frente um mundo estranho colonizado apenas por homens: o mundo do poder esportivo. Os homens e eu. A segunda coisa, quase imediata, foi boa parte deles me estranhar e me odiar. Medo e ódio de ambas as partes: eles não me entendem, eu não os entendo.
A terceira coisa foram os casais: homens com alguma ambição, talento e sucesso e mulheres pentelhas.
O mundo original deles continua sendo diferente do meu, mas temos um espaço de afinidade: o amor e dedicação ao esporte. O compromisso com a excelência. E elas? Fora duas ou três atletas auto-suficientes, elas caem em duas categorias: aquelas em relação às quais eu sou indiferente ou acho simpáticas (à distância) e as pentelhas.
Embora as apressadas certamente me classificarão como machista, minha caracterização das mulheres pentelhas é apenas um cansaço com o que não tem novidade alguma e representa um estorvo na minha vida. Que o comportamento (pentelho) delas é socialmente determinado é chover no molhado. O deles também é.
Não é problema meu. Nada é problema meu exceto o que é meu problema. O relacionamento assimétrico dos meus colegas, parceiros e poucos amigos é inteiramente desinteressante para mim. Não ligo, não quero saber, não me interessa. No entanto, no momento em que esse relacionamento invade a minha vida, os meus projetos (onde um ou mais deles participem), os meus sonhos, aí passa a ser problema meu.
Aparecem as pentelhas. As mulheres – namoradas, “noivas” (grande novidade, pois segundo minha mãe não existiam desde o século XIX) e “esposas” (não mulheres ou companheiras: esposas) – que atrapalham reuniões, treinos e campeonatos. Que aparecem sem ser chamadas. Que ligam toda hora ou mandam mensagens no celular deles, que fica piando com aqueles barulhinhos insuportáveis até que eu digo “desliga essa porra antes que eu jogue essa merda na parede”. Que atrapalham meus momentos de lazer com eles. E que, acima de tudo, são âncoras no sucesso deles.
“É mulher, Ma: mulher é assim mesmo”, dizem eles. É o mundo que os meus amigos conhecem. Depois de um tempo eu respondo: “… peraí: mas e eu? Eu sou mulher, cis e hetero, como elas. Como fica isso?” “Ah, você não existe – você é um ponto fora da reta”, me respondem.
Ruim isso. Eu não existo? Não, não existo.
Então aparecem as imagens da minha mãe e minha avó, que passaram uma vida nos empurrando para a excelência. Minha mãe empurrou com firmeza meu pai para a excelência profissional. É absurda a ideia de alguém estabelecer horário para o cônjuge estar em casa: meu pai trabalhava até altas horas e nos finais de semana tinha os amigos dele, com quem jogava futebol e poquer. Ela tinha a vida dela, tinha a gente para encher o saco dela, tinha as reuniões semanais com as amigas criacionistas com as quais ela nutriu décadas de discussões filosóficas e teológicas, tinha os livros que ela queria paz para ler – enfim, tinha vida própria. Isso foi o meu “default”, quando o default majoritário é completamente distante disso.
Esse mundo meio cor-de-rosa me deixou despreparada para lidar com a violência lá fora. Não fui capaz de identificá-la quando se aproximou de mim e me fez vítima, na adolescência, no horror dos partidos de esquerda onde me violentaram de todas as formas. Aprendi que o mundo lá fora é um horror mesmo, e ele está mais perto do que eu imaginava. No entanto, continuo não compreendendo: são só coisas horríveis, irracionais, nojentas que temos que destruir ou manter bem longe.
O meu mundo de relações de gênero é todo fragmentado. Tem o da minha infância, aquele que dá a todos nós o substrato afetivo para entender a realidade, do qual eu lembro de simetria e mulheres fortes.
Tem o mundo do ativismo, da participação em manifestação pública, cheio de desigualdade, violência e desequilíbrio, mas é antes de mais nada abstrato. As pessoas são casos e números. Os horrores mais horríveis acontecem “lá longe”. Mesmo as violências contra o meu irmão, que é uma mulher transgênera, nunca foram físicas e são perpetradas pelos seres abstratos do mundo dos caretas. A gente protesta, escreve textos que eles são incapazes de escrever (e até mesmo de entender), mobiliza a opinião pública e eles continuam abstratos.
E tem o mundo que eu administro no dia-a-dia, cheio de homens perigosos e mulheres pentelhas, sobre o qual boiam uns amigos (e pouquíssimas amigas) por aqui e amigos e amigas fora do Brasil. Boiam na superfície fina de um mar fundo e escuro de relações que eu aceito existirem, estudo, mas sou inteiramente incapaz de compreender de verdade.