Outro dia eu comecei a escrever algo para este grupo e por questões do meu computador, perdi tudo. Então vou editar isso aqui, quem sabe até mesmo publicar em aberto, já que minha preocupação é em como gerir relações entre participantes de um projeto sem fins lucrativos.
São questões facílimas de resolver no powerlifting de fundo de quintal ou no burocrático, pois existe, sim, remuneração. E existem formas extremamente eficazes de coerção. Por causa da remuneração (indireta, ilegal, etc) e da coerção (e severa), além de relações baseadas em trocas igualmente nebulosas com as instâncias governamentais, eles conseguem organizar qualquer coisa.
Precisamos, então, entender o que é um projeto efetivamente sem fins lucrativos e como garantir que ele seja executado.
Então vamos lá para as premissas:
- O projeto é sem fins lucrativos. Projetos sem fins lucrativos podem envolver pessoas por diversas vias:
- A missionária ou religiosa. A necessidade de realizar o projeto é uma demanda moral, interna. O quanto ela é mobilizadora depende do quanto ela define a identidade de quem s sustenta
- A do benefício de longo prazo. Vale a pena investir agora, em forma de tempo e trabalho, para no futuro ganhar em forma de dinheiro
- A da necessidade do produto. Não tem ganho nem a curto, nem médio, nem longo prazo. Este é o pior dos cenários: as pessoas se envolvem porque se o projeto não for desenvolvido, a perda é imensa. Alguns percebem mais a perda que outros, alguns efetivamente perdem mais que outros. As pessoas que se envolvem são aquelas que percebem não apenas que a perda, para elas, é imensa, como também percebem que se elas não se envolverem, outros, mesmo perdendo, não vão se envolver. Esse é o pior dos cenários não apenas por não existir ganho em fase alguma, mas porque o projeto já nasce com ressentimento: há uma parcela muito maior de qualquer população que “paga para ver” e tem convicção de que se eles não fizerem, vai aparecer aquele pessoal que sempre faze e vai resolver o problema de todo mundo.
- Porque o projeto começa no déficit, ou seja, gerando despesa sem que haja receita, as pessoas têm que enfiar a mão no bolso de alguma forma. Para algumas, isso é um alívio, pois elas se encontram em melhores condições financeiras e assumem que dando uma maior contribuição financeira sofrerão menor pressão por assumir outras tarefas. Outra causa de ressentimento.
- Porque o Brasil não tem tradição de ação coletiva (construir uma igreja com todo mundo carregando madeira e as mulheres fazendo a comida, como foi a história dos pioneiros norte-americanos), não há tradição de técnicas de divisão de trabalho. Divisão de trabalho é algo que existe desde que hominídeos caçam juntos. Discutir como fazer algo coletivamente e não resolver rápido é um processo de reinvenção da roda, que gera ressentimento.
- O Brasil tem uma cultura de sub-texto. Isso é até enaltecido na cultura popular. É a forma poética do brasileiro se expressar. Não é, não: é a incompetência em administrar a comunicação direta de fatos desagradáveis que gera uma rede de eufemismos. Basta dizer que no país da propina, essa palavra é proibida. Há todo um vocabulários para definir a transação ilegal que envolve propina. Isso vai fundo na nossa cultura: tentamos ensinar nossas crianças a dizer “eu não gostei” quando são mordidas por outras crianças. Mas logo em seguida elas desaprendem isso e substituem o “eu não gostei disso” por um jogo complicado e perverso.
- O mesmo ocorre com o pedido de desculpas. A cultura brasileira é uma das que mais tem dificuldade com assumir a responsabilidade sobre um dano, e, ou reafirmar que o dano era mesmo o resultado esperado, talvez até mesmo intencional, ou fazer uma profunda auto-análise, entender por que caminhos perversos da mente aquele dano foi cometido contra o outro, admitir isso e procurar fazer alguma reparação. Eu, sinceramente, nunca vi isso acontecer.
Tudo isso torna muito difícil desenvolver um projeto coletivo sem fins lucrativos aqui. A simples sinceridade de declarar o motivo de se estar envolvendo com o tal projeto já é um desfalque.
Em pouco tempo, o grupo envolvido no projeto se perde em complicadíssimos labirintos de subtextos. Discussões sem fim acontecem porque o jogo (“games people play”) toma prioridade sobre o que quer que tenha que ser feito.
Quando o jogo leva a um ressentimento tão profundo que não há forma possível de reverter o dano em algum sub-conjunto de relações, é preciso decidir algo muito objetivo: quem sai. Mas sendo brasileiros, ninguém quer olhar para o problema dessa forma. O grupo está vivendo aquele estado de profundo mal estar civilizatório, porque esta ocorrência obriga todo mundo a olhar para a universalidade daquilo. Nessa hora, alguém tem que tomar a iniciativa e expor este rei nu: é preciso decidir quem é mais prioritário ao projeto e o outro sai. Não tem outro jeito. O grupo é pequeno demais para os dois.
Há problemas de culturas de gênero e regionais. As mulheres, aqui, foram educadas para jogar longos, circunvolutos e redundantes jogos retóricos. A expressão de desespero de alguns homens diante disso não é motivo de riso, é uma tragédia. Isso exibe o quanto a nossa cultura de gênero é tal que as mulheres são condicionadas a jogar, a manipular e a se ressentir com a demanda da expressão objetiva e direta.
Só que num projeto, isso é obrigatório. Quando o projeto é remunerado, como foram os que eu coordenei até hoje, eu vi sim, meninas chorando antes de apresentações, manifestações de irracionalidade, isso tudo. Só que dia 20 o relatório tinha que estar na minha mesa, ou então a pessoa estava demitida. Era bolsa: eu tinha o poder de dar e tirar sem aviso prévio e sem nada. Tudo isso era sabido por todos e sempre funcionou.
Mas num projeto não remunerado isso é impossível. Ninguém tem o poder de retirar a remuneração do outro porque ninguém tem remuneração.
O valor da CONFIANÇA e do COMPROMISSO sobem infinitamente. No entanto, confiança e compromisso são itens raros e escassos no mercado simbólico.
O que fazer?
Na minha opinião, estabelecer regras nada simpáticas:
- Não havendo remuneração, substitui-se o poder de coerção que ela representa por acordos assinados e registrados, com penalidades em dinheiro.
- O estatuto em si representa um efeito coercivo. Não é a toa que eu quero que esse assunto se resolva o mais rápido possível e que a responsabilidade legal saia o mais rápido possível das minhas mãos.
- Que nada seja sub-entendido e tudo seja manifestado por escrito, de forma suficiente e necessária. “Reitero meu compromisso em organizar campeonatos em minha região, em minha academia, e a compra de anilhas calibradas é o primeiro passo para a efetivação do mesmo.” Simples, três linhas, economiza páginas de discussão e horas de inbox. “Minha militância partidária é prioritária sobre o apoio a esta organização. Em verdade, eu não deveria estar aqui, pois, calculando meu tempo disponível, ele é nenhum para esta causa considerando uma priorização efetiva”.
- Erros cometidos devem ser seguidos de um documento de análise e auto-crítica submetido e aprovado pelo grupo. Sem isso, o indivíduo deve ser eliminado do grupo e se fizer parte da diretoria, marcada uma assembleia extraordinária para substituí-lo
- As funções de cada pessoa devem ser estipuladas com extremo detalhamento num regimento interno. Isso nunca foi feito, mas assim que a situação cadastral da ANF/BPL estiver regularizada, é o primeiro passo. Quem faz o que, onde, quando e como.
- As atividades da entidade devem ser precisamente descritas: 1. Organizar campeonatos; 2. Administrar uma rede de contatos com crossifts; 3. Controlar administrativamente a contribuição dos sócios; 4. Fazer o sol nascer; 5. Realizar os partos da periferia de Osasco. Enfim, essa é uma lista hipotética,mas a verdadeira tem que ser feita, sob risco da entidade morrer.
- Quando alguém não dá conta ou percebe que não tem interesse nem mesmo no esporte se isso depender dela realizar a tal função, essa pessoa deve ser imediatamente substituída.
- CRONOGRAMAS: tudo tem que ser executado segundo cronogramas. Todo gestor de projeto sabe disso. Sem um cronograma e um gerenciamento de projeto, é o mesmo que declarar a entidade morta. Feito o cronograma, uma pessoa necessariamente é responsável pelo monitoramento do cronograma, que é função quase tão importante quanto a de manter a tabela de recordes.
- Amizades não devem ser estimuladas. Se acontecerem espontaneamente, ok. Eu sugiro fortemente que ninguém ofereça a própria casa para alojamento de membros do grupo de outros estados. As pessoas não partilham os mesmos valores morais. Quanto menos estes valores forem confrontados, melhor para a saúde da entidade. Esse tanto eu aprendi bem nos Estados Unidos: não se discute política, religião ou loucura exceto se o grau de intimidade seja muitíssimo elevado, coisa que quase ninguém tem aqui. Essa pressa em forçar intimidade, típica da cultura brasileira, é parcialmente responsável pela morte de projetos. Não é preciso e até é melhore que não haja intimidade entre os membros do grupo que executa o projeto.
- As relações com os atletas deve ser igualmente bem regulamentada. O ressentimento que todos os membros do grupo terão ao ver os atletas alegremente usufruindo do produto de seu sofrimento é inevitável. Assim, deve ser regulamentado.
Nada disso é digestivo ou agradável. Mas se vocês querem a entidade ativa, é preciso encarar a parte dura da realidade de não ser corrupto num país onde isso é o default.