A volta de quem nunca foi: os pais da força (capitulo 1)

 

Há uma semana fui a uma festa. Eu não vou a festas. Fui a esta porque o convite foi feito por alguém a quem um powerlifter jamais recusaria convite algum: o lendário Tonhão, ou Antonio Mendes da Silva Neto.

O convite foi feito uma semana ou dez dias antes e a ligação caiu antes que eu entendesse que se tratava de uma festa. Achei que era algo envolvendo barras e anilhas, mas respondi o que se responde nessas horas: “não importa o que, aceito, estou dentro”.

Antes de descrever o evento em si, acho importante qualificar esta resposta. É a mesma que eu daria a Eugênio Koprowski. É a única resposta certa – a resposta marcial. A resposta meritocrática. Eu vim de um mundo em que se respeita a autoridade de fato e de direito. A autoridade conquistada pelo mérito. Assim se estabelecem as hierarquias que garantem a continuidade e crescimento das tradições. Quando entrei na universidade, o estudante de iniciação tinha que aprender a lavar a vidraria. Por um tempo, por mais que viéssemos do Alto de Pinheiros, éramos estagiários dos técnicos da limpeza. Depois, aprendíamos a fazer meio de cultura. Só mais tarde o orientador nos encaixaria num projeto de pesquisa, sob a tutela de alguém mais qualificado.

No esporte, minha vida começou na esgrima, sob o Mestre Angelo Pio Buonafina. Não se questiona as ordens do mestre. Por definição, ele sabe – eu não.

Assim, Eugênio Koprowski pode me pedir o que quiser. No ano em que eu nasci, há uma foto de Eugênio na frente de seu primeiro ginásio. Eu não sabia andar quando ele já sabia agachar e muito mais.

Dez anos antes de eu saber o que era uma barra olímpica, Tonhão agachava com ela com 345kg raw.

Uns dias depois do telefonema de Tonhão, meu amigo e parceiro Andre Marangoni me explicou que era uma reunião “do pessoal da velha guarda”. Perguntei pelo Vidal – ele confirmou que Vidal estaria presente.

José Carlos Vidal era uma espécie de figura mitológica para mim. Muitas pessoas me falavam deste a quem todos se referiam como o maior atleta de força que o país já teve. Os cinco títulos mundiais em luta de braço, as marcas em levantamento olímpico e os records em powerlifting falavam por si mesmos. Eugênio me contava sobre Vidal como “o menino muito forte” com quem partilhava tantas histórias.

Também estava lá Romeu Ghattas, outro grande recordista do powerlifting e parceiro de aventuras de Vidal. Conheci Romeu um dia no Clube Sirio, quando fui conversar com Vidal.

Finalmente, ali estava o precursor deles todos nos levantamentos de peso: Tamer Chaim. Conheci Tamer tempos antes, quando visitei sua academia e li o livro sobre sua vida.

A reunião aconteceu na casa de Guilherme Assad. Guilherme é um atleta e treinador que conheci em seu primeiro campeonato de Levantamento Olímpico. O Guilherme que encontrei sábado passado era outro: com uma estante cheia da melhor literatura internacional em LPO, na minha frente eu tinha um estudioso.

Um bando de nós outros estávamos por ali: o excelente powerlifter Rogério de Morais, Andre, meu parceiro, eu, Romeuzinho (filho de Romeu Ghattas) e Pão.

Finalmente chegou Rodolpho Droghetti, reconhecido personal trainer e profissional da Educação Física. Rodolpho chegou um pouco mais tarde, trouxe duas pizzas, uma revista para eu assinar, me deu dois livros e falou uma quantidade muito grande de coisas importantes – quantidade maior do que eu consegui assimilar naquele momento. Tenho certeza de que ele tentou me explicar o significado e relevância do que estávamos fazendo ali.

Ainda estou processando a informação e partilharei com vocês aos poucos. A primeira dica para o entendimento de tudo veio da frase do Tonhão: “estamos acompanhando você há tempos, Marília. Você está muito sozinha”.

Não tive resposta. A verdade é que estou com a passagem comprada para uma viagem com uma volta provisória. Acabava de processar o último grande desastre organizativo do esporte no continente, com conseqüências pessoais trágicas para mim. Minha decisão era de virar as costas e deixá-lo. Deixar o que organizei em ordem, arrumadinho, impostos pagos, e não olhar para trás. Tinha decidido que minha missão para o mundo terminava com minha conclusão definitiva de que não sei administrar o jogo de interesses e que tenho, sim, o direito de levantar peso por mim e para mim.

Por que tudo era tão feio e ruim, já não me interessava mais analisar.

Olhando a composição daquela mesa, de repente entendi o óbvio: a tragédia do powerlifting brasileiro é sua descontinuidade histórica. Esse pessoal, agentes do início de uma história da qual jamais deveriam ter deixado de ser protagonistas, era a peça que faltava ao quebra-cabeças. Entendi que sem eles, não existe nenhuma solução.

A triste invenção da perversidade que tenho chamado de “powerlifting de fundo de quintal”, que criou uma aberração usando de maneira profana nossos três levantamentos como um self-service vagabundo, só existe porque ninguém mais sabe o que é powerlifting. A guerra que opôs estes novos organizadores, sem compromisso com um passado que nunca conheceram, aos herdeiros da tradição, que seja lá por que motivos não conseguiram expurgar as perversões, destruiu o futuro, ao comprometer o passado.

Cada um tem seus motivos. No meu entendimento, aqueles que se descolaram da tradição e permitiram a emergência do powerlifting de fundo de quintal, talvez sem ter noção do mal que faziam, realmente enterraram nosso esporte. Sabe-se lá por que, foram seguidos por muita gente. Campeonatos cujo foco são troféus hipertrofiados e festança substituíram os momentos solenes de execução regrada dos rounds obrigatórios de agachamento, supino e terra.

Se há alguma chance de se restaurar a tradição perdida e oferecer às gerações futuras uma chance de se encontrar nessa nobre arte do powerlifting, isso depende do nosso sucesso em re-estabelecer o elo de continuidade entre aqueles que criaram esta tradição no Brasil e o que quer que venha a ser feito.

As risadas dos homens naquela mesa e a promessa de que voltariam me deram esperança.

Eu espero que eles voltem. Pelo esporte, pelo país, pelos atletas, por eles mesmos e por mim. Por mim, sim, porque se eles voltarem, então talvez tudo que eu fiz não tenha sido tão em vão.

Sábado passado, aqueles “meninos fortes” me asseguraram algo ao que me agarro desesperadamente a cada dia, que é o sentido, sentido este, na minha vida, amalgamado ao aço da barra e das anilhas.

 

 

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