Anteontem recebi um e-mail de um amigo (vamos chamá-lo de “amigo 1”) que me pediu ajuda com uma questão de saúde. Não muito diferente de outros que recebo de gente que me identifica por aqui, pelo meu site ou pelo orkut: um homem sedentário com sobrepeso acentuado que não está satisfeito com essa condição. Este homem não está satisfeito nem com a própria aparência, nem com a sensação geral de mal-estar associada à condição. Me disse que se sente bem quando pratica algum exercício, mas que seu médico (cujo CRM no mínimo deveria ser cassado) pediu que ele não praticasse atividade física alguma. O médico anti-ético, desinformado e mal-formado não é assunto desta crônica – são a maioria e já tratei deles em outro artigo.
Minhas questões aqui são outras: a primeira é a linha que divide a preocupação com a forma física (no sentido de imagem, formato visual) e a preocupação com a saúde, no sentido mais restrito mesmo, de indicadores clínicos (pressão arterial, colesterol, glicemia, etc.). A segunda é o quanto cada uma percorre um perigoso gradiente que vai da indiferença à obsessão, de uma ALIENAÇÃO a outra em sentido especular. A INTEGRAÇÃO, então, que tenho insistido desde o começo deste projeto ser o “oposto” da alienação, pode não o ser.
Vamos à primeira questão. Minha atitude com relação a pessoas que estão acima do peso, em geral, vai na seguinte linha: PESO não importa – importa composição corporal, ou seja, o quanto de cada tecido compõe seu corpo. Faz diferença ter 75kg onde 35% sejam gordura ou 17% sejam gordura. E por que importa? Aí vem a tal questão da SAÚDE: o tecido adiposo é endocrinologicamente ativo. Isso não é uma coisa conhecida há muito tempo. Eu diria que um consenso quanto ao fato de que a atividade endócrina (de produção hormonal) do tecido adiposo é relevante é coisa desta década. E ainda não se alastrou o suficiente pela comunidade médica. Explicando melhor, o tecido adiposo produz alguns hormônios que influem no metabolismo energético geral, afetando coisas como a saciedade, a resistência à insulina e outras respostas hormonais secundárias. Assim, não é tão “tudo bem” ser gordinho. É tudo bem até certo ponto, a partir do qual a pessoa está, sim, correndo um risco importante, já que deixar sem controle esse tecido adiposo ativo é o caminho para o desenvolvimento de diabetes tipo 2. Esta, quando diagnosticada (porque quase sempre é diagnosticada tarde demais), é irreversível. E é uma desordem que não apenas afeta fortemente a qualidade de vida do indivíduo como tem uma letalidade gigantesca e sub-notificada. Na verdade, a diabetes tipo 2 está “por trás” de grande parte dos óbitos cardíacos, renais e de outras complicações.
Mas tudo tem limite: meu outro amigo (que passa a ser o “amigo 2”), preocupado com uma gordurinha abdominal sub-cutânea recebe de mim uma expressão indecifrável e esfíngica. Me recuso a me posicionar. Por que? Porque neste caso é apenas uma questão estética, diante da qual adotei uma postura de neutralidade. Essa é a postura que mais me dá conforto. Quero deixar bem claro que não desprezo a preocupação dele de maneira alguma, apenas acredito que não devo me posicionar por ser uma questão totalmente pessoal e intransferível – posicionar-se atrapalha. Essa gordurinha sub-cutânea é inócua do ponto de vista da saúde dele. É ele quem tem que decidir se está feliz ou não com ela ali. Eu não o acho mais ou menos bonito por causa daquele tecido: acho-o lindo, porque o amo e acho que ele tem uma beleza que independe daquela gordurinha. Mas meu amigo 1 não recebeu de mim o mesmo tratamento: a este, enviei um longo e-mail, com detalhadas explicações. Ele não tem uma inócua “gordurinha sub-cutânea”. Ele tem aquela barrigona redonda, que se costuma chamar “barriga de cerveja”, mas não é. Isso é adiposidade visceral, aquela que mais tem atividade endócrina, e tem muito deste perigoso tecido. Não é uma questão estética.
Pois bem, o amigo 1 está no bom caminho, pois quer lutar contra essa sua condição de obeso sedentário, a qual não sei como se estabeleceu. No caso dele, ser indiferente, adotar a atitude do “foda-se, sou gordinho e feliz” é algo complicado. É um desastre pedindo para acontecer. O amigo 1 está preocupado com a sensação de mal-estar que sente e também com os indicadores clínicos – pressão elevada, triglicérides e colesterol elevados, etc.
A atitude no extremo oposto é uma atenção exagerada com estes indicadores. Tive um aluno que tinha dois planos de saúde, só para “garantir” que estaria plenamente protegido. Conheci gente que media a própria pressão todos os dias (só para constatar que estava sempre normal). Outros que se pesavam o tempo inteiro.
Só que esta paranóia beirando a hipocondria talvez ainda seja mais benigna do que outras formas de obsessão que vi se desenvolverem depois de reações à alienação corporal do relaxo. O indivíduo recupera a forma e aí se torna obsessivo com a mesma – com a forma, no sentido de imagem, da coisa visível, pesável, mensurável pelo lado de “fora” do corpo. Compra sempre os últimos fat-burners (termogênicos, substâncias que supostamente queimam gordura) lançados no mercado de suplementos para não sair dos 6% de gordura corporal; contrata um personal trainer para manter o volume muscular nem muito grande, nem muito pequeno; precisa se encaixar perfeitamente no padrão “candidato a capa do Men’s Health” do mês, o equivalente masculino, digamos à “Boa Forma”. É a mulher que vai à academia e transgride o treino prescrito porque acha que só ficará bem fazendo um bilhão de exercícios para glúteos e perna. E tem certeza de que os professores escondem dela um segredo, o tal do “exercício perfeito para o bum-bum” (termo educadinho para bunda). Essa mulher não está preocupada com o equilíbrio do corpo dela. Ela é tão fora do eixo quanto o conhecido “sabirila” (perna de sabiá, tronco de gorila) masculino.
No entanto, entre o relaxo e a obsessão com a saúde, deve existir algo mais. Algo que não é nem um, nem outro, nem está entre os dois. É uma atitude de “awareness” – de “consciência”, de quem tem sensibilidade e generosidade para ouvir seu corpo e os sinais de sua saúde, mas que também verifica indicadores objetivos, vai ao médico regularmente, etc. E entre o total desleixo com a imagem, sob qualquer argumento e racionalização (a de que a preocupação com a imagem é “fútil”, que é “materialista” e todas as besteiras que ouvimos todos os dias de gordos e magros ressentidos), e a obsessão com a conformidade aos padrões estéticos dominantes, também existe uma terceira atitude, que não é intermediária. Está fora da reta: é o que eu chamaria de RECONHECIMENTO. A principal expressão disso é olhar o espelho e “reconhecer” a imagem refletida: “sim, esta sou eu”. Não “eu estou por baixo dessa capa de gordura” ou “eu sou a pessoa que essa coisa era há vinte anos”. Esta SOU eu, aqui e agora. E essa imagem me satisfaz.
Acho que o que existe em comum com essa terceira atitude – tanto na saúde quanto na estética – que se distancia do relaxo e da obsessão, ou do que chamei de duas formas especulares de alienação, é a INTEGRAÇÃO.
Mas, assim como a linha que divide o Mal e o Bem é fina e fugidia, é a “thin red line” (a tênue linha vermelha) que eu tanto comento, essas linhas que dividem comportamentos integrados e alienados também não são tão bem demarcadas. Assim como emoções fortes como o medo e a raiva podem facilmente transformar atitudes originalmente benignas em comportamentos altamente destrutivos, outras emoções escondidas, dolorosas demais, por vezes, para que tenhamos consciência delas, nos empurram para fora de nós mesmos. Aí então nos “des-integramos”, nos alienamos e nos perdemos em labirintos de terras estranhas, olhares alheios, forças e interesses que não nos dizem respeito.
Um dia eu escrevi que “feia é a dor”, me referindo a externalização dessas forças destrutivas da doença física e mental. Por analogia, “bela” seria a saúde.
Será que é assim?…