Depois de anos sentindo esse desconcerto ao ouvir o lamento de mulheres sobre suas bundas, acho que cheguei a alguns pontos que me ajudam a administrá-lo. Não sei até que ponto podem efetivamente ajudar as mulheres em desacordo com suas bundas. Sem pretensão, vamos a eles.
Comecemos pelo começo: a natureza do lamento.
“Não suporto mais essa minha bunda, detesto essa bunda”
“Por que? É linda!”
“Porque ela é grande demais.”
“Não é.”
“É”
“Não é”
“É e eu sei que todo mundo olha.”
“Quem é todo mundo?”
“Os homens em geral. Os homens na rua falam coisas nojentas, no ônibus, no metrô… ficam olhando…”
“Mas isso é lixo humano.”
“Mas outros homens fazem isso. Todo homem faz isso. Já é difícil falar e expor minhas idéias. Sabendo que eles olham apenas minha bunda, nem ligam para o que penso ou falo, é insuportável.”
O diálogo acima é fictício. É minha síntese de centenas de diálogos nessa linha. É a partir desse diálogo que abordamos o problema. A primeira tarefa é entendê-lo, dar um nome a ele, ainda que provisório, e separar o afeto do entendimento. Por exemplo: só agora percebo que minha resposta automática é mais que inadequada. É errada! Confrontar alguém com essa queixa é invalidar sua experiência subjetiva. Isso não pode.
Tirar nosso próprio afeto e emoção da cena facilita a coisa. Fica claro que estamos diante de uma manifestação de insatisfação com o próprio corpo. Essa insatisfação em específico tem nuances paradoxais. Ela penaliza estas mulheres pelo avesso. Explico: se no item “bunda” o ideal formolátrico prescreve quadris largos e bundas grandes, caricaturadas pela indústria pornográfica, para as mulheres reflexivas a bunda é uma maldição. Aquilo que é entendido como uma conformidade exagerada a este estereótipo é sentido por elas como uma erosão de sua identidade, e, pior, uma negação de sua integralidade. A mulher que sofre com a bunda supostamente grande se vê mutilada e fragmentada. Ela se transforma numa bunda ambulante, sem fala, sem pensamento, sem subjetividade.
Muitas mulheres insatisfeitas com bundas que consideram “grandes demais” (em relação a?…) sofreram violências sexistas variadas. Foram olhadas ou abordadas com hostilidade, foram vítimas de agressão verbal e até física ou foram assediadas em ambientes coletivos. Parece fácil situar nestes episódios traumáticos a origem de sua insatisfação corporal, um triste caso de auto-rejeição.
Mas será que é mesmo? Será que estas mesmas mulheres, se isoladas de olhares e falas hostis, estariam plenamente satisfeitas com suas bundas? Eu acho que não. Embora alguns estudos (metodologicamente suspeitos) questionem o papel decisivo das mídias publicitárias na inculcação de valores estéticos e na gênese de comportamentos e atitudes a partir deles, acredito que a insatisfação das auto-representadas bundudas está aí. Elas construíram uma representação de desacordo a partir de uma bunda ideal da qual desviam.
Estas mulheres que arduamente lutam para construir identidades mais integradas são vítimas paradoxais: ao rejeitar a versão caricata do ideal formolátrico e buscar uma “bunda discreta” de modo a se dar um imaginado espaço para impor outras qualidades como dominantes em sua identidade pública, elas embarcam na rota da auto-mutilação e, portanto, submissão (mesmo que às avessas) àquele ideal.
Por que mutilatória, se não há cirurgia ou remoção traumática de uma parte do corpo? Mutilação é o dano ou lesão a uma parte do corpo que degrada sua aparência ou função. O ataque à própria bunda que a rejeição ocasiona é mutilatório porque objetiva extirpar tecido saudável. É emocionalmente mais mutilatório ainda, pois enquanto tal tecido não é fisicamente extirpado (com cirurgia ou dieta), ele é representado pela vítima como um “não-eu”.
O resultado é um comportamento de dietas irracionais que, se bem sucedidas, provocarão modificações gerais no corpo das supostas bundudas quase sempre produzindo perdas indesejadas. Como as dietas são irracionais, a tendência é um padrão sanfona, onde dietas se sucedem umas às outras gerando períodos mais magros e outros mais gordos, com potenciais danos substanciais ao humor das vítimas.
Dieta como um regime alimentar voltado para produzir benefícios à saúde, gerar bem estar, prover o corpo da energia e blocos construtivos adequados, modular o funcionamento orgânico e o humor é sempre um elemento importante da vida. Dietas, ou programas alimentares, criados para modificar UMA parte do corpo e assim satisfazer um ideal estético fragmentador é um desastre pedindo para acontecer.
Do outro lado da ponte estão as mulheres em busca de mais bunda. Esta população é mais heterogênea.
Temos uma classe de mulheres relativamente jovens que se entregou de corpo e alma para o inimigo: submissas à formolatria, percorrerão para sempre o caminho sem fim da busca pela desumanizada forma ideal. A tal forma ideal é publicitária e ideologicamente perfeita. Inalcançável por ser desumanizada, a forma ideal escraviza homens e mulheres numa busca condenada à insatisfação. Mais e mais dinheiro é investido em diferentes ramos da indústria da beleza. Eles oferecem os itens desejados, numa espécie de açougue macabro, onde se encontra bundas, peitos, braços, mãos, pernas obscenamente expostos para seus consumidores.
Essas mulheres em busca de mais bunda, que não necessariamente sofrem por se verem desbundadas, estão convencidas de que a aproximação do ideal formolátrico através do incremento de bunda trará mais aceitação pública, melhores pares românticos, eventualmente um compromisso romântico, mais dinheiro e coisas que nem elas sabem nomear. Dependendo da disponibilidade de recursos financeiros e educacionais, elas podem buscar soluções cirúrgicas, com próteses de silicone, ou, para as dotadas de um pouco de bom senso e cultura, podem tentar aumentar o volume da bunda com programas de treinamento voltados para a hipertrofia dos glúteos.
A solução cirúrgica pode parecer assustadora para nós, mas os números são expressivos: nos Estados Unidos, o implante de próteses de nádegas aumentou de cerca de 800 no ano de 2010 para cerca de 1100 em 2011. Ainda está longe dos mais de 300 mil implantes mamários por ano, mas é uma tendência em crescimento. No Brasil, a procura é bem maior: em 2009, foram realizados mais de 8000 implantes de nádegas, o dobro do ano anterior.
A busca de mais bunda através do exercício físico parece a manifestação suprema do comportamento saudável. Só que não. O treinamento de força ou com pesos de uma forma integrada contribui para uma auto-representação integrada de si mesma. As pessoas que agacham profundo, com cargas relativamente pesadas, estão encontrando e aperfeiçoando em si mesmas o padrão mais fundamental do movimento humano: das três “letras” básicas deste alfabeto motor, agachar é uma, sendo puxar e empurrar as outras duas. O tamanho resultante da bunda numa vida que inclua agachamento (e não passar o dia condenada a sentar-se em cadeiras) varia conforme a resposta hipertrófica que aquela pessoa está geneticamente programada a ter. Ficar satisfeita ou não com este tamanho não tem relação com a funcionalidade da bunda.
Assim, as pessoas que buscam aumentar a bunda com exercícios em geral executam freneticamente (e de maneira pouco planejada) exercícios “para aumentar o bumbum”. Como as academias de ginástica convencionais oferecem apenas o que eu chamo de “treino de açougue”, dividindo o corpo em partes e não em movimentos, elas satisfazem sua busca pelo serviço.
A bunda continuará sendo um problema, pois, como já apontado, o ideal formolátrico é inalcançável. Este tipo de treino de açougue é alienante, pois consolida a fragmentação corporal da qual todos nós somos vítimas. A mulher, fragmentada, frustrada e derrotada, continuará insatisfeita com sua bunda.
A outra categoria de mulheres dramaticamente infelizes por falta de bunda é o daquelas que, acima de seus trinta e cinco anos, na perimenopausa, observam o que se chama de “bunda caída”. Sim, com as alterações hormonais contínuas até a menopausa ocorrem alterações na composição corporal. O que ninguém conta é que são menos os hormônios e mais uma vida anti-ergonômica, que tira todos nós de nosso padrão de amplitude completa na extensão do quadril (segurem a pergunta, explico em seguida), obrigando-nos a trabalhar, dirigir e até descansar sentadas que realmente vai gradativamente levando a uma atrofia da musculatura glútea (e da postura, da saúde articular e em ultima instância da saúde mental).
As mulheres ditas “mais velhas” são uma categoria de vítima particularmente triste da formolatria. Sua flacidez (repito, produto principalmente de anos de violência ergonômica contra nossos corpos), rugas na pele, novas manchas e coloração da mesma e bunda caída são condenadas pela formolatria: não pode. Quem tem isso recebe a sentença de invisibilidade estética e subtração da sexualidade.
Estas mulheres são submetidas a todo tipo de humilhação. Seus corpos são tão condenados que até mesmo a vestimenta “apropriada” para elas esconde os horrores apontados pelo discurso formolátrico. Passam a usar roupas largas, não podem mais vestir bikinis e muito menos andar peladas. Seus corpos são tão proibidos quanto cenas de obscenidade (e o que seriam elas?).
Vivendo esta perseguição e bombardeio por todos os lados, as mulheres mais velhas vão em busca de soluções milagrosas para suas proibidas bundas flácidas. Cirurgia não é uma alternativa. Exercício físico se torna cada vez mais complicado: como entrar no império da futilidade, as academias tradicionais, e enfrentar o olhar reprovador de seus freqüentadores? Quem é que consegue fazer força com prazer num ambiente assim?
Sem alternativa, sobra a dor da expulsão do paraíso da juventude, materializado na bunda de flacidez indesejada. Depois vem a raiva, o ressentimento e finalmente o comportamento auto-destrutivo.
Vamos falar sobre bunda
Agora vamos falar sobre bundas reais (como diferente das imaginárias super-bundas ou infra-bundas de nossas vítimas). O que tem dentro da bunda? Coisas importantérrimas! Eu não acho que seja possível classificar hierarquicamente partes do corpo ou órgãos quanto a sua importância. Seria o cérebro mais importante que o coração? E este mais que os rins? O fígado mais que todos, segundo os chineses? Bobagem. No entanto, se fosse possível apontar uma articulação que realmente nos caracteriza e é imprescindível para nossa existência motora, a articulação do quadril seria forte candidata.
A articulação do quadril em nossa espécie é única. O motivo é essa novidade evolutiva da qual somos os representantes mais completos. Não, boba, não é a inteligência: é o bipedismo. Pois é, somos bípedes completos, não temos a canja de poder dar uma apoiada amiga no chão com os braços, nada disso. É preciso se equilibrar sobre dois minúsculos pés. Alguém aí lembra de ter tentado, quando criança, colocar um bonequinho (ou bonequinha, para as de nós que receberam este brinquedo como próprio à nossa natureza feminina) em pé? Não ficava, certo? Então como é que você fica em pé? Porque dentro de nós existe um complexo músculo-esquelético-articular-ligamentar-tendinoso-nervoso que está em permanente prontidão e recrutamento para nos manter assim. É o sistema lumbo-pélvico-abdominal, chamado por alguns de “core” (centro, coração). Eu gosto desse nome: “core”. Essa região do nosso corpo, que inclui a pelve, a região lombar e abdominal foi considerada por tradições médicas e corporais asiáticas como sendo a sede da nossa força vital. Se é ou não, fica por sua conta escolher seu sistema de conhecimento. No entanto, que é responsável por nossa postura bípede, isso é certo.
Este sistema organiza os movimentos – de flexão, extensão e estabilização – da articulação do quadril. As cadeias cinéticas (monte de músculos que atua junto para criar um determinado movimento) responsáveis pela flexão e extensão do quadril são os elementos mais críticos das funções motoras, além de estabilizadoras.
Os músculos que produzem movimento no quadril foram organizados em grupos: grupo glúteo, grupo adutor, grupo do iliopsoas e grupo rotator lateral. Não importa o nome deles. Importa saber que não apenas são eles as estruturas acionadas para que andemos, nos viremos, nos mantenhamos em pé, dancemos e pulemos como – e aí vem a parte divertida – consigamos levantar do chão. Quem tem criança deve ter observado uma brincando de lego no chão. Como ela fica? Agachada, certo? Levantar-se do chão a partir desta posição e voltar a ela (também conhecido como AGACHAR) é um dos primeiros e mais básicos movimentos humanos. Ele ocorre graças à articulação do quadril e da capacidade de recrutar as estruturas motoras que a fazem estender e flexionar.
Não existe criança pequena que não saiba agachar e não existe criança pequena sem bunda. O problema começa com a primeira cadeira da vida dela.
Cadeiras são objetos inventados pelo demônio, fabricados no inferno, que servem para nos incapacitar, gerar deformações nos nossos padrões de movimento, produzir lesões e dores nas costas, restringir nossa liberdade de ir e vir e nos alienar de nossos corpos. Quem primeiro sai do nosso controle é a bunda. Ela, sede vital de nossa existência humana, é amarrada numa angulação de 90 graus, angulação essa a partir da qual o recrutamento da musculatura envolvida na extensão é dramaticamente reduzido. Em outras palavras, a musculatura que forma isso que chamamos de bunda é principalmente ativa para que saiamos do chão e a ele voltemos. Com a maldita cadeira, nossa bunda é demitida de parte de suas funções primordiais.
Então, irmãs, sentemos no chão! Agachemos! Façamos as pazes com nossas bundas! Elas nos dão movimento e liberdade e nada mais justo do que nós as libertemos do jugo da formolatria.
Celulite, esse mito besta
“Minha bunda é horrível, cheia de celulite”
Você já teve micose? Gastrite? Laringite? Otite? Conhece alguém com diabete? Artrite? Artrose? Os sufixos “ose” e “(vogal)te” são utilizados no jargão técnico das ciências médicas para designar patologias ou morbidades. Infecções e inflamações. Doenças. Desordens.
Em 1978, Nürnberger e Müller publicaram um artigo intitulado “A assim chamada celulite: uma doença inventada” (Nürnberger & Müller 1978). Tentemos evitar o labirinto epistemológico segundo o qual toda a descoberta é ou contém uma invenção. Neste caso, “invenção” se refere a ficção: uma doença que não existe.
Pois é, celulite é uma não-doença com nome de doença, que atrai bilhões de dólares para seu “tratamento”. O termo nem existia até 1920 e começou de fato a ser usado no final dos anos 1960. A partir daí, a celulite ganhou a mídia, a atenção da medicina estética e o imaginário aterrorizado de bilhões de mulheres adultas.
Celulite é uma condição normal de quase toda mulher pós-púbere. Ocorre em todas as etnias, em mulheres magras e gordas, altas e magras e de qualquer idade adulta. Trata-se de uma herniação da gordura subcutânea pelo tecido conectivo fibroso, formando ondulações visíveis. Suas “causas” são tão relevantes como as “causas” do crescimento do cabelo. Em geral, consideramos racional buscar as causas para o não-crescimento do cabelo, isso sim inesperado em condições saudáveis. Ou para a não-transparência da unha, ou para a não-ocorrência de cílios nos olhos. A busca de “causas” para a celulite não é impulsionada por questões do reino das ciências da saúde. É exibida assim para o público num recurso retórico persuasivo para o que de fato é pesquisa industrial do ramo da cosmética e medicina estética. “R&D” (research and development, pesquisa e desenvolvimento) de um segmento que já lucra muito, mas lucra mais ainda se der uma aura de legitimidade clínica à sua pesquisa e produtos: “a cura da celulite” (Barclay 2008).
Claro que ajuda muito se as supostas vítimas da não-doença forem levadas ao desespero e, mais ainda, se forem levadas a considerar sua condição uma doença merecedora de cura. O coquetel está feito: a mulher não apenas é feia por ter celulite, mas é também doente.
A construção da celulite como feiúra tem uma certa relação com a bonequinha que eu propus que a leitora tentasse colocar de pé. Ela não tem celulite (e também não fica em pé). Superfícies plásticas são assim. Pele de mulher não: tem celulite. Praticamente toda mulher. Só isso já deveria ser evidência suficiente de que algo de podre no reino da formolatria está por baixo dessa feiúra (Kite 2013, Merkin 2007).
Assim, sua bunda com celulite não tem nada de feia. Ela é uma bunda saudável como praticamente todas as demais bundas de todas as mulheres e de um certo número de homens também. Feia é a mentira criada pelo marketing formolátrico que abusa de mulheres indefesas contra este bombardeio ideológico munido de bundas fotografadas e fotoshopadas para que você acredite que o saudável é o plástico.
Policiamento e satifação corporal
O aspecto mais escuro e assustador da alienação corporal e da ação mutilatória da indústria da beleza é o auto policiamento. O ataque publicitário da formolatria transforma cada um de nós em nosso próprio algoz e monitor. Uma vez interiorizada a forma ideal, até mesmo a exposição permanente à mídia formolátrica é menos necessária: o próprio indivíduo exercerá a coerção esperada (Aubrey 2006).
No nosso caso das bundas, a objetificação corporal operada pela mídia cria uma “eu-bunda” em cada uma de nós. Essa “eu-bunda” cuidará de monitorar diligentemente o tamanho e transformações (ou falta delas) de nossas bundas. Levada a extremos obsessivos, o resto de nós vira coadjuvante da eu-bunda.
Brincadeira? E a mulher melancia? Mulher morango, abóbora ou sei lá mais que fruta? São piadas muito sérias, pois da caricatura pornográfica emerge um dedo acusador para cada uma e todas nós: sua bunda não presta, logo, você não é mulher. A mulher é sua bunda.
Como meu pensamento é probabilístico, não vou apostar que 100% das minhas leitoras não adere ao paradigma da mulher-fruta. Mas é quase isso. No entanto eu diria que bem mais que 80% seria capaz de admitir insatisfação com sua própria bunda não-vegetal. A verdade é que é quase impossível não interiorizar nem que seja um pouquinho só essa fruta podre que o patriarcado nos enfia goela abaixo.
De novo a questão da má ciência: a famosa pseudo-científica psicologia evolutiva e as bundas
Como não podia deixar de ser, temos que falar novamente da mal fadada psicologia evolutiva, essa excrescência intelectual pseudo-científica que tão bem serve qualquer ideologia conservadora. Em algum momento da sua vida, você já topou com ela. Sabe aquela idéia de que é “natural” ou “biológico” que o homem aprecie bundas e peitos grandes? Vem seguido de algum argumento sobre a evolução do neocórtex humano para identificar estas estruturas uma vez que a correlação entre a sua ocorrência e maior saúde reprodutiva feminina garantiria seleção natural. Esse lixo vai longe e há textos publicados “provando” que bebês recém nascido já nascem capazes de identificar rostos “belos”, os quais, obviamente, são rostos caucasianos, nariz afilado, simetria caucasiana, etc. Não é muito fácil encontrar boa literatura científica de crítica à psicologia evolutiva, já que os pesquisadores das áreas mais sérias (e por sérias digo envolvidas em controvérsias de fato e não de mentirinha) não perdem mais seu tempo com ela.
“É tão ridículo que não escrevemos mais a respeito”, me disse ontem uma das maiores autoras da história e filosofia das ciências da vida, professora de uma universidade americana.
Mas deviam. A questão é que, ridícula ou não, a psicologia evolutiva exerce ainda hoje uma grande influência sobre segmentos ou não suficientemente educados para compreender a não cientificidade de seus enunciados, ou suficientemente conservadores para passar por cima disso. Tal influência e o fato de que o discurso da psicologia evolutiva é utilizado como instrumento de coerção e argumento persuasivo no marketing de produtos de beleza deve ser suficiente para que mereça um esforço desconstrutivo por parte da comunidade científica.
Vamos a alguns de seus enunciados: a bunda, segundo vários psicólogos evolutivos revisados em Slade (2001) seria não apenas o sítio primário de atratividade e apresentação sexual feminina em humanos (e outros primatas) como poderosa a ponto de exercer pressão seletiva para uma “redundância sexual”: a atratividade por seios. Se você já parou de rir, podemos continuar. Outro enunciado importante é a famosa razão quadril/cintura. A Organização Mundial de Saúde correlacionou esta razão, com limitada abrangência étnica, à prevalência epidemiológica de determinadas condições patológicas. Como a psicologia evolutiva não poderia deixar de lado um prato cheio como este – afinal, temos muita lingerie para vender e financiar nossos pseudo-centros de pesquisa – , veio com a pérola seguinte: é possível mensurar a atratividade estética e sexual feminina através desta razão, sendo ela um elemento comprobatório da validade de si mesma. Se isso não é tautologia, então eu não sei o que é. O autor é o infame Devendra Singh, da Universidade do Texas (veja aqui uma coletânea de seu besteirol ).
A psicologia evolutiva parte do pressuposto de que a mente humana é composta de módulos cognitivos especializados a determinadas tarefas. Estes módulos teriam sido selecionados para garantir maior eficiência na reação a estímulos ambientais e, portanto, proporcionar mais ajuste (genetic fitness) à espécie. O problema é precisamente o de que é um pressuposto que comprova a si mesmo permanentemente (também chamado de tautologia). Não existe um fundamento empírico do ponto de vista neurológico ou palentológico para nenhum destes “pressupostos”; a maioria não é testável (coisa óbvia para qualquer biólogo, pois biologia evolutiva não é uma brincadeira), verificável ou falseável; ignora olimpicamente o imenso corpo de conhecimento da antropologia cultural e da sociologia, estas, sim, ciências consolidadas e reconhecidas. Ou seja: é a arte do “como queríamos demonstrar” (leia mais em Gannon 2002).
Mais que isso, é a arte do “como a indústria da beleza queria demonstrar”, com requintes de ridículo ao “provar” que caucasianas são biologicamente mais atraentes do que negras.
O tiro de misericórdia é a homofobia implícita: beleza e atratividade sexual, para a psicologia evolutiva, é somente heterossexual. Se isso não é viés ideológico, de novo, eu não sei o que é.
Leitora, são estes pseudo-cientistas que escrevem suas bobagens a soldo de indústrias de lingerie, de cosméticos e fármacos e produzem as verdades pseudo-científicas que lhe torturam na relação com sua bunda. O tamanho de sua bunda, a largura de seu quadril ou a relação de tudo isso dentro do corpo integrado não têm relação nenhuma com sua atratividade sexual para homens ou mulheres. Muito menos tem legitimidade na construção da sua beleza.
Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come
O problema da nossa relação com a formolatria no que diz respeito a nossas bundas é o beco sem saída que ela pode gerar. Submeter-se a ela nos condena à busca sem fim de uma forma ideal. Transgredi-la implica os riscos de grave punição e reprovação social (Koggel 2006).
Não existe nenhuma solução fácil ou rápida. Infelizmente, de fato só temos dois instrumentos na mão: uma desconstrução terapêutica das bases ideológicas desta sofrida relação, bem como uma reflexão construtiva sobre conceitos cinesiológicos, para empoderar as mulheres em sua re-apropriação de suas bundas; uma desconstrução de denúncia sobre esta manifestação da formolatria, de maneira a paulatinamente erodir a legitimidade do discurso dominante sobre nossa tão fascinante, fundamental, e bela bunda.
Bibliografia
Nürnberger F, Müller G. So-called cellulite: an invented disease. J Dermatol Surg Oncol. 1978 Mar;4(3):221-9.
Len Kravitz, Ph.D. and Nicole J. Achenbach Cellulite: A Review of its Anatom y, Physiology and Treatment – http://www.drlenkravitz.com/Articles/cellulite2.html
Lindsay Kite. Cellulite, Rimples, And Dimples – A Beautiful Reality Check – January 26, 2013 | by – Everyday Feminism – http://everydayfeminism.com/2013/01/cellulite-rimples-and-dimples/
By DAPHNE MERKIN – The Politics of Appearance – The New York Times – Published: August 26, 2007 – http://www.nytimes.com/2007/08/26/style/tmagazine/22politics.html?pagewanted=all&_r=0
A Scientific Solution to UNSIGHTLY CELLULITE BY LAURIE BARCLAY, MD AUCUST2008 1 LIFEEXTENSION | 29 http://www.encognitive.com/files/A%20Scientific%20Solution%20to%20UNSIGHTLY%20CELLULITE.pdf
RESEARCH ARTICLE Effects of Sexually Objectifying Media on Self-Objectification and Body Surveillance in Undergraduates: Results of a 2-Year Panel Study Jennifer Stevens Aubrey Journal of Communication ISSN 0021-9916 Journal of Communication 56 (2006) 366–386 ª 2006 http://www.yorku.ca/rajagopa/documents/Aubrey-06-sexObjectif.pdf