A agenda do aborto: o que é “pró-escolha”

Eu acho engraçado como no Brasil tudo dá uma degeneradinha pela via do simplismo. Enquanto em outros países o pau come e a discussão se aprofunda, de maneiras diversas, desde as menos até as mais sofisticadas e civilizadas, aqui, infelizmente, “pró-escolha” significa “pró-aborto”. Existe até mesmo uma certa glamourização do aborto. O discurso da ministra da Eleonora Menicucci de Oliveira ilustra o meu ponto. Em suas entrevistas, ela fala com verdadeira ternura sobre a beleza do aborto *.

Independente da discussão (bem mais complicada, aliás) sobre quando o feto passa a ser uma pessoa dotada de direitos, e, portanto, à vida, o direito da mulher à escolha tem sido reduzido ao direito de abortar.

Como este discurso é articulado por pessoas que dificilmente passaram por situações de profunda opressão, quando lhes é negado o direito a escolher parir a criança, o processo decisório (“escolha”) é apresentado ao público pela metade. Isso é um equívoco político, lógico e ético.

Segundo as poucas pesquisas metodologicamente respeitáveis feitas sobre aborto no Brasil, a maioria das mulheres que se submete a ele tem nível educacional precário e ficou evidente a relação entre a dificuldade na prevenção da gravidez e sua interrupção. Essa dificuldade tem relação com falta de informação, mas também com outra mais complicada. Mulheres com nível educacional precário também têm muito maior dificuldade em ser assertivas e impor sua vontade a quem quer que seja, desde o parceiro até a família.

Pela abundante evidência anedótica que coletei em meus muitos anos de familiaridade com este tema, me parece que a maioria das mulheres que se submete a abortos não o faz por uma escolha não coerciva. Em geral, o aborto é produto de pressão do parceiro, da família ou de ambos. Se é uma escolha da mulher, freqüentemente é produto da total ausência de condições infra-estruturais em sua vida para arcar com o que seria a outra escolha: ter a criança. Assim, a mulher pobre, com parceiro pobre, em condições de trabalho opressivas (com risco de demissão após o risível período “protegido”) ou, pior, sem trabalho, sem creche adequada na região, sem escola pública minimamente decente, aborta. Será que ela realmente “escolheu” abortar? Ou foi forçada pela total impossibilidade de arcar com não fazê-lo?

Muitas adolescentes abortam porque, se suas famílias descobrirem que são sexualmente ativas, serão duramente punidas. Possivelmente até mesmo expulsas de casa. Será que essas meninas realmente “escolheram” abortar?

Vamos para situações concretas. Eu fui uma dessas meninas. Fiquei grávida aos 16 anos. O partido (de esquerda!) ao qual eu pertencia, o meu namorado e a minha família decidiram, contra a minha vontade, “me” submeter a um aborto. Além da reprovação generalizada por ter engravidado (como se eu tivesse engravidado por cissiparidade, igual a uma bactéria), tudo foi decidido à minha revelia. No dia, minha mãe e o namorado me levaram a esta clínica clandestina no Pacaembú, me deixaram lá, eu fui mais humilhada ainda pelos médicos da clínica, que perfuraram meu útero e depois, no dia seguinte do aborto, fui punida numa reunião do “comitê estudantil” da maldita Convergência Socialista por não conseguir distribuir a porcaria do jornaleco deles.

Eu não escolhi nada! Onde está o meu direito à escolha? Eu queria ter o filho. Se eu tivesse um mínimo de apoio da minha família, do idiota do namorado e do Estado, hoje ele teria 32 anos e seria alguém – feliz ou não, não sei. Mas alguém que eu amaria tanto quanto a filha que anos mais tarde eu escolhi ter e não consultei ninguém. Meu corpo – minha escolha.

Vamos ao caso contrário. A cunhada do meu pai engravidou quando estava com rubéola. A decisão óbvia teria sido abortar. No entanto, sendo uma família católica e conservadora, tiveram a criança, que nasceu deformada, com seríssimos problemas metabólicos, de desenvolvimento embrionário e de crescimento. Viveu miseráveis 58 anos e morreu sob extremo sofrimento, com um rim só, pois um deles nunca funcionou, sob diálise, dor e horror. Onde estava a escolha da grávida? Ora, se perguntada, ela hoje negaria que foi forçada. Mas uma pessoa sob as condições dela já não tem escolha por definição. A escolha sumiu sob doutrinação católica conservadora desde que nasceu.

Ser pró-escolha, portanto, logicamente implica defender que todas as mulheres tenham pleno controle do processo decisório quanto a engravidar e manter seu feto. De maneira nenhuma implica defender o aborto, e sim o direito a escolher se pretende ou não engravidar, se, uma vez grávida, pretende ou não permitir o desenvolvimento do feto a termo.

A discussão sobre a legalização do aborto é inteiramente outra: diz respeito a proteger a vida das inúmeras mulheres que – obrigadas, em sua maioria – se submetem a abortos clandestinos e, como eu, podem ter sérios danos físicos.

Ou morrer. Caso em que eu diria que foram assassinadas pela falta de escolha.

* Ao meu ver, as afirmações de Eleonora Menicucci não têm credibilidade nenhuma, principalmente depois de negar o tal curso de aborto na Colômbia, onde as mulheres eram capacitadas a se auto-abortar, e desautorizar conteúdos de entrevistas.

 

 

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