Existem várias marilias, muitas mesmo. Uma delas é a presidente de uma entidade nacional de powerlifting, outra é uma atleta deste esporte, outra é professora, outra é uma socióloga que analisa as relações sociais no esporte e há outras. A que escreve aqui é a atleta, que é, antes de mais nada, uma pessoa.
Este final de semana aconteceu mais um campeonato da ANF – a Aliança Nacional da Força, entidade que eu criei há mais de cinco anos com o objetivo difuso de oferecer uma alternativa ética, bem regrada, justa e de alto nível para o powerlifting brasileiro. Originalmente o projeto não era meu. Nasceu em 2007, de um grupo de atletas experientes. Eu era a novata entre eles. Por motivos que nem eu sei explicar direito, a bola acabou na minha mão e todos eles foram cuidar de suas vidas.
Nos primeiros anos foram realizados campeonatos completamente “fundo de quintal”, desrespeitando regras e procedimentos, desrespeitando o bom senso e violentando o meu senso de rigor a um ponto em que eu me neguei a sequer pensar mais na ANF. Eram eventos organizados por outras pessoas, sempre no interior e eu, ainda bem inexperiente, aceitava o repetitivo argumento de que se eu endurecesse demais as regras, não haveria atletas.
Uma conclusão óbvia foi se formando na minha cabeça: se aqui não é possível haver competição se forem respeitadas regras, então aqui o powerlifting não é possível, ponto final. Por causa dessa inferência, por um tempo meu olhar esteve voltado para o exterior. Em 2011 e 2012 eu só competi fora do país.
Algo, no entanto, mudava. Em 2012, Diego e André vieram treinar comigo (não por acaso os dois fundadores da MAD Powelifting também). André é o homem da estratégia, enxerga longe e consegue se manter racional mesmo quando um tornado nível 5 destrói todo o mundo como o conhecemos. Segundo ele, a ANF era possível.
Lembro dos primeiros agachamentos do André, com faixa, pouco estável com seus 120kg. Talvez esse fato dê ao leitor a dimensão da minha emoção ao vê-lo agachar, anteontem, com 215kg, sem faixa, estável e bem. Um ano e pouco se passou entre um e outro agachamento. Ele ficou muito mais forte e talvez manifeste em quilos o que todos nós passamos por dentro.
Também lembro do “menino inteligente” que conheci na Gama Filho e convidei para um treino. Lembro de algo que não chegava a 200kg com faixa. Esse é o Diego, vice-campeão mundial em duas federações e talvez um dos maiores talentos esportivos que eu tenha visto nos últimos tempos. Foi também meu parceiro em mil aventuras pelos Estados Unidos, onde levantamos peso, rimos, vencemos, brincamos, conhecemos coisas incríveis e demos estofo aos nossos sonhos. O “menino inteligente” fez, no sábado, um agachamento de 220kg e um terra de 250kg pesando 82kg.
(dia em que conheci Diego, na Gama Filho, há muito tempo atrás, eu acho…)
Carlos Daniel, que me conheceu nos tempos negros da ANF esmagada pelo fundo de quintal, foi comigo à Colombia em julho de 2012 e começou a trajetória internacional que faria dele, no ano seguinte, vice-campeão mundial da IPL, em Las Vegas. Domingo eu o vi agachar com 290kg só com faixa, com menos de 90kg de peso corporal. Eu acompanhei Carlos Daniel se graduando em medicina, cumprindo o serviço militar como médico do exército e hoje escolhendo seu mestrado e residência.
(Carlos Daniel anteontem)
Em 2013 eu continuei competindo fora do Brasil, mas a ANF ganhou existência real: fizemos dois campeonatos bem sucedidos, exatamente como eu sonhava: o tablado povoado só pelos personagens regulamentares, equipamentos oficiais e anilhas calibradas, árbitros treinados e regras rigorosamente aplicadas. Um público diferente do que eu tinha visto até então no powerlifting brasileiro ocupava este tablado. Pessoas de nível educacional mais alto, educadas, competindo com seriedade e prazer, tendo ali um espaço para uma busca interior própria, e não a única alternativa de auto-afirmação e construção de identidade, como tão tristemente eu via antes no “velho powerlifting”. Estes novos atletas eram o estofo do sonho institucional. Finalmente, a alternativa organizativa para um powerlifting “limpo, rigorosamente regrado e solidário” ganhava forma e concretude graças a eles.
Foi deste período que vieram os três grandes impactos para mim. Na ordem de chegada, o primeiro foi o Netto. Netto foi meu aluno e lembro que no meio das 15 almas que era minha função iluminar com a rota para o reencontro com a força e os padrões de movimento perdidos, tinha esse garoto que já veio em forma de atleta pronto. Quando ele competiu pela primeira vez, a maior emoção do campeonato foi a “briga” dele com o peso numa categoria onde todos eram muito bons: ele mesmo, Denis Campos e Vinicius Barbosa. Netto não é uma pessoa de muitas palavras e dos três impactos, o primeiro foi o daqueles olhinhos brilhando para o tablado.
O segundo foi Denis, que venceu em sua categoria e me disse, no canto, em tom confidencial: “sabe quando você olha para a barra?…” E esperou que eu completasse: “… e ela olha de volta para você?”. Ah, como eu sei, Denis… Mas muito pouca gente sabe e é dessas coisas que ou se sente, ou não adianta tentar explicar.
(essa foto é demais, é a imagem da solidariedade: Netto e Denis treinando juntos)
(Denis no campeonato passado, sem costela quebrada)
(Netto no campeonato passado)
O terceiro foi Hugo e esse impacto foi como uma supernova explodindo ali: “Marília, sabe o que é você passar uma vida se sentindo um estrangeiro e de repente você ver que chegou em casa?”. Eu nunca pensei que fosse ouvir isso de outro ser humano que não eu mesma. Um filme rápido passou pela minha cabeça com os últimos cinco anos.
(Hugo no dia em que “chegou em casa”)
E então eu não estava mais sozinha.
Sábado, Netto e Denis competiram. Netto cumpriu exatamente o que eu esperava dele, brilhando no tablado. Denis sofreu um acidente e fraturou duas costelas. Contra a dor e a lesão, subiu no tablado e defendeu o direito ao próprio sonho. Não há luta mais gloriosa. Falhou sob 200kg porque, leitor, 200kg em cima de uma costela quebrada não são brincadeira. Me fez lembrar de outro momento em que chorei diante da imagem, a de Lu Haujie nas Olimpíadas passadas .
Hugo foi sobrecarregado por problemas de organização sérios que tivemos: ausência dos voluntários, Morgana e eu hospitalizadas com suspeita de dengue e mais ou menos tudo dando mais ou menos errado. Dentro de mim eu temia pelo que me parecia inevitável: perda de performance. Pouco tempo antes, Hugo sagrou-se “melhor atleta” (Best lifter, título calculado pela fórmula de Wilks de força relativa) no campeonato brasileiro ANF-WPC. Domingo era para ser seu dia.
Hugo agachou com 220kg, fez um supino de 162,5kg (tirado de dentro do espírito, segundo ele) e um terra de 290kg. Assim que ele finalizou sua segunda pedida, Morgana e eu discutimos qual seria a terceira. Ela sugeriu que seria 305kg, para uma quarta de 310kg. Eu achei que seria 302,5kg (na lógica de vencer o que falhou no último) e uma quarta de 310kg. “Vamos apostar?”, propus. “Vamos. Valendo um Tilex”, Morgana respondeu. Ela ganhou o Tilex.
E eu continuo não estando mais sozinha. Cada quilo levantado por eles é um quilo de confirmação de pertencimento para mim. Esse “outro” powerlifting é possível.
Esse “outro powerlifting” não seria possível sem uma legião de apoios de gente muito qualificada, como Nellie Santee, publicitária, que organizou todas as operações online e comunicação da ANF; Leonardo Caramori, arquiteto e historiador, que veio salvar nossa vida com a planilha; Jean Wainer, programador e treinador, que desde o começo garantiu que a maldita planilha, que sempre teima em encrencar, não inviabilizasse os eventos, entre outros.
Outras coisas foram belas de se ver este final de semana. Marcos Ferrari completou um total que o qualifica para o próximo RUM (Raw Unity Meets), o campeonato que reúne os 60 melhores atletas raw do planeta. Essa também era uma condição em que eu estava só – não estou mais. Com um agachamento de 330kg, um supino de 210kg e um levantamento terra de 322,5kg, ele chegou lá.
O pequeno Fernando Villela executou um levantamento terra de 220kg que supera em 2,5kg o atual recorde mundial da IPL.
Diego Bueno, o “menino” que 10 anos atrás motivou meu primeiro post de blog, uma “carta para os pais dos meninos que querem fazer Educação Física” (que ele não fez e hoje é feliz como administrador de empresas), levantou 240kg de um terra que aprendeu a executar na terça-feira anterior, menos de uma semana antes do campeonato. Me encheu de orgulho pelo talento e vontade de colocá-lo em movimento no local certo, que é o tablado sagrado.
Durante os três dias de competição, a “turminha do Rio” ficou acampada aqui em casa: CD, Rafael e João. Minha sala era uma grande tenda com desodorante, cueca e canecas espalhadas por toda parte e três meninos que se preparavam para levantar peso. Os três foram vitoriosos, curtiram muito, animaram minha existência virótica e deixaram saudades.
Não tenho mais em quem dar bronca por largar a cueca em cima da mesa, por se atrasar para sair de casa, nada disso.
No ninho vazio, penso aqui comigo que, no final das contas, foi um fim de semana de grandes feitos, grandes conquistas, grandes quebras e grandes mudanças.
Para todos nós.
(the end 🙂 )
Reproduzo abaixo dois pequenos textos dos personagens acima que marcaram o turbulento período pré, Peri e pós-campeonato. São palavras como estas que me ajudam a continuar coisas que talvez eu não continuasse.
(do Hugo)
Concordo no ponto que, se você pensar em culpa como sua, ela é existir.
Porém, graças a sua existência, muitas pessoas fizeram algo que jamais conseguiriam.
A “culpa” de sua existência gera ódio em ALGUMAS pessoas. Gera ORGULHO e ADMIRAÇÃO em outras.
No meu ver, você é como um espelho. Se uma pessoa é má, ela se sente ameaçada pois, perto de vc, a maldade dela fica evidente. O mesmo com inveja, rancor e etc. Porém, se ela for boa, você a torna melhor, mais feliz e mais independente.
Creio que você não conseguirá fugir disso onde você estiver. Não acho que fora do pais seria diferente. Você nasceu pra educar o mundo. É a melhor professora e educadora que eu ja vi. Você dá exemplos de tudo aquilo que fala, não faz um discurso diferente dos atos.
Quem te odeia, não tem educação. Quem tem, te admira. E vai ser isso por todo sempre.
Se você testar seu ateismo, esse é seu destino. E você já encontrou, pelo menos, umas 10 pessoas pra filtrar esses problemas pra você. E nós vamos fazer pois, sem você, nada disso teria sentido.
Bj
Ps: seus pais verão recordes mundiais seus com material eleiko 🙂
(do Carlos Daniel)
Brother, pode ser puta e pode ser louca mas é a NOSSA puta louca e a gente gosta PRA CARALHO dela e dela a gente NÃO LARGA. E ai de quem mexer com ela. She’s the mother of dragons and we ain’t no small dragons.