“Coma suas verduras porque é saudável.” Quantas vezes você ouviu isso? Depois de um certo número de repetições de frases retóricas como essa, certas associações vão se tornando partes de um modelo para nós – no caso, o modelo de “saúde”. Assim, associamos “saudável” com “natural”, com “normal”, com “equilíbrio”, com “parcimônia”, entre outras coisas.
Nenhuma destas associações resiste a um exame mais cuidadoso. Vejamos “natural”. A idéia de Natureza, em si, já é complicada porque ninguém sabe a que tipo de polaridade estamos nos referindo: natural X artificial? Natural X social? Na verdade, nenhuma das duas polaridades é real: não há praticamente nada, no nosso mundo social, que deixe de ser em certa medida manipulado e portanto “artefato” – artificial. Cachorro é da natureza? Tem certeza? Com todas essas raças produzidas por centenas de anos de seleção artificial? Não, não é. Nem deixa de ser. Vitamina C sintética é artificial? E qual é a diferença molecular dela para a vitamina C do suco de laranja? Nenhuma. Então são a mesma coisa. E portanto não faz sentido separar o que é natural do que é artificial. Agora mais difícil: câncer de próstata aos 75 anos é natural? Com certeza. É saudável? Não. Morfina é natural? Vem das plantinhas? É. Vem. É saudável? Não: faz um mal danado e só se justifica se você estiver morrendo de dor.
Vejamos normal. Normal se refere a uma distribuição probabilística de uma determinada característica numa população, descrita pela curva “normal”. Assim, “normal” é o padrão predominante. No caso da adiposidade humana, nessa etapa da história da sociedades industriais é possível dizer que o normal é o sobre-peso. Ninguém, em sã consciência, vai concordar que sobre-peso é saudável.
De novo: câncer de próstata aos 75 anos é normal? Com certeza: atinge uma alta porcentagem da população masculina. É saudável? Óbvio que não.
“Equilíbrio” é uma condição em que duas características opostas ou diferentes estão numa relação tal em que não há prevelência de uma em relação a outra. Acho que esta associação é a mais insustentável. Equilíbrio de que com que? Consumo de álcool: o saudável seria não beber muito, nem pouco. Será?!
Na verdade, o conceito de saúde, talvez um dos mais empregados no discurso de todos os atores relevantes na nossa sociedade, é bastante fugidio. Segundo a Organização Mundial de Saúde, saúde é “um estado dinâmico de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doença ou enfermidade” (WHO’S New Proposed Definition. 101st Session of the WHO Executive Board, Geneva, January 1998. Resolution EB101.R2). Esta “nova” definição da WHO apenas introduziu a palavra “dinâmico” na frase da resolução de 1948, quando da constituição da Organização. Em 40 anos, evoluimos pouco na conceituação de saúde.
No dia a dia de quem treina pesado, a gente ouve coisas como: “esse tanto de músculo que você tem não é saudável”. Por que? “porque não é natural”. O músculo não é natural?! “não, essa quantidade não é normal”. Com certeza, não é normal: a massa muscular predominante na população – na “norma” – é muito menor. Mas é saudável?
A idéia de que uma capacidade funcional desenvolvida ao extremo não é saudável não tem nenhum fundamento científico, assim como atribuir a uma percepção subjetiva, nunca parametrizada, o critério de saúde, não se justifica.
Qualquer atleta pode descrever a relação entre sua condição de bem-estar e seu nível de treinamento. O indivíduo mais treinado tem melhor circulação, controle hormonal, humor, sexo – tudo. E lembra de quando não tinha. Parece bastante evidente que existe uma relação entre a otimização das funções vitais e o que quer que seja essa condição de bem-estar.
Talvez seja interessante explorar a idéia de que a saúde pode estar no desenvolvimento máximo das capacidades funcionais do indivíduo, seja qual for sua idade, gênero ou condição inicial.
Marilia